Caim

BANQUETE DE HERESIAS
Em “Caim”, seu novo romance, Saramago esbalda-se com o fim da Inquisição na pele de um expatriado herói moderno
Por Gisele Toassa, especial para a Revista O Grito!

Neste ano de 2009, José Saramago, após O Evangelho Segundo Jesus Cristo, se apossa de mais um personagem bíblico para alargar os fundamentos de um ateísmo satírico que honra os lombos dos iluministas. O livro é uma prosa mais fluente que o Evangelho. Caim, símbolo da inveja, é reabilitado não pelas mãos do cristianismo, mas pelas inconstâncias do Criador. Os sensíveis, os supersticiosos e os que vivem na dúvida, em cujos corações ecoa o medo ao deus das narrativas bíblicas entoadas na infância por familiares, padres ou pastores, têm muito a aprender com este romance. Pois, ao preparar seu novo banquete de apostasias, o ventre de Saramago não expele o aborto do niilismo, mas dá a luz um pequeno humanismo: é o da razão singela, da solidariedade da gente miúda e da coragem de rir-se das narrativas bíblicas, que há tantos séculos deformam a natureza humana. Como Sartre, Saramago poderia dizer que seu existencialismo é um humanismo.

O velho romancista já apelidara as sagradas escrituras de “manual de maus costumes”, “catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”, e prossegue nas injúrias emprestando as vozes do narrador e de Caim para ironizar o Absurdo bíblico. Saramago lembra Espinosa, que, numa das mais divertidas passagens da Ética, identificou a misteriosa vontade de deus com o asilo da ignorância: “Estou cansado da lengalenga de que os desígnios do senhor são inescrutáveis, respondeu Caim, deus deveria ser transparente e límpido como cristal em lugar desta contínua assombração, deste constante medo, enfim, deus não nos ama” (Saramago, Caim, p.135) Sua ironia não tem a soberba do cinismo, mas sim o compasso de um humor reflexivo que põe nossos pés no paraíso da língua portuguesa. É brincalhona a sua mimese do linguajar bíblico. Se o desmistifica, nosso autor não deixa de pagar-lhe créditos na moeda da literatura: ele arremeda-o, como o operário indisciplinado que debocha de seu senhor; como a criança que vai ao desfile de roupas novas do rei e se depara com Vossa Majestade vestindo ceroulas. Aqui vai um petisco servido na cena em que Caim presencia Josué amaldiçoar Jericó: “Naquela época as maldições eram autênticas obras-primas literárias, tanto pela força da intenção como pela expressão formal em que se condensavam, não fosse Josué a crudelíssima pessoa que foi e hoje até poderíamos tomá-lo como modelo estilístico, pelo menos no importante capítulo retórico das pragas e maldições tão pouco freqüentado pela modernidade”. (Saramago, Caim, pp.111-112)

Com esses elementos, avisamos de que o leitor encontrará simplesmente um romance, e não um Tratado Teológico-Político. São velhas histórias numa nova versão. A minuciosa dissecção das Escrituras não é o seu eixo, mas sim as deformações humorísticas que preservam a essência do antigo testamento. Em Caim persiste a parcialidade do criador com os judeus (como o de tantos outros deuses para com os cérebros que os conceberam) e as cidades saqueadas por eles. A sequência das narrativas não é respeitada, criam-se novos cenários, e algumas histórias ganham o primeiro plano (destaco a destruição de Sodoma e Gomorra, as guerras de Josué e as provações de Jó). Já que a bíblia, como o admitem até os teólogos, não pode ser lida literal, mas simbolicamente, é então grande sua afinidade com os romances modernos, tais quais os de Saramago, que desdenham do realismo. O narrador é nosso contemporâneo nessa velha mitologia. Assim se sai na cena em que Abraão, por capricho do criador, vai sacrificar seu filho Isaque: “O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. […] Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso [p.79]”. Deus é um técnico de futebol kafkiano, afeito aos testes, expondo os homens às tentações e depois castigando-os por sucumbirem. Um deus repleto de fraquezas que requer de nós algo sobre-humano.

O ateísmo de Saramago é fresco por explorar os despóticos horrores e as incoerências do deus bíblico a partir da perspectiva de um filho decepcionado que vive a desafiá-lo. Caim, antes crédulo quanto à justiça de seu Senhor, golpeia Abel após constatar que o deus carnívoro desprezava o fruto de seu trabalho agrícola, não era justo e nem bom, mas sujeito a humanos apetites; um algoz da curiosidade humana; um sádico a entreter-se com afirmações de seu poder; um sujeitozinho acomodatício que tudo sabia e tudo deixava passar, se não o movessem a ira ou a inveja aos homens. Os patriarcas que refletem seus maus costumes não ganham retrato muito melhor. Caim, ovelha desgarrada, confronta deus e é condenado a vagar no espaço e no tempo do livro.

E assim somos nós, filhos de Eva, desorientados sujeitos modernos; educados nalguma fé e mais ou menos destinados a perdê-la. Talvez por ser algo como um alter-ego do criador, Caim é um herói apenas relativamente. Vira pisador de barro e apaixona-se por Lilith, que, na mitologia judaica, é a mulher de Satanás ou Asmodeus. Em seu leito, conhece o prazer, mas não a Graça do Dogville de Lars Von Trier. Este solitário Caim salva alguns da ira do senhor e observa, indignado, os seus desmandos. Também assiste (com a resignação da gente miúda) ao enforcamento daquele que tentara assassiná-lo, sabendo que o poderoso mandante, marido de Lilith, saía impune. O amor de Lilith e Caim, diferente do de Baltazar e Blimunda (do Memorial do Convento), não os enriquece com virtudes ético-políticas. Nessa paixão tórrida, Saramago, mais uma vez, põe-se às voltas com os mistérios das entranhas, tão familiar aos leitores doMemorial do Convento ou do Ensaio sobre a Cegueira, embaraçando-se com a condição humana que começa pela formação das vísceras e se finda na sua dissolução. Na força dessa nova parábola inventada por Saramago, Caim é um homem sem pátria, sem utopias, sem porvir; errante como os turistas e pobre como os imigrantes; sem raízes, é alvo de desconfiança e de solidariedade, acabando por ser um desconhecido para seu próprio filho. Caim explora muito bem as contingências do anonimato e, mais raramente, as cenas de multidão, lembrando-nos o Memorial do Convento.

Difícil é louvar suficientemente a coragem e a vitalidade de Saramago, um dos últimos autores que dão sentido à expressão “escrita engajada”. Este romance prolonga e revigora sua militância contra as superstições e assegura: “o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.” (José Saramago, O fator deus, 19/09/2001, Folha Online).