Crítica: Gen – Pés Descalços

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Nakazawa detalhou em livros o horror da explosão (Divulgação)

RELEMBRANDO O HORROR DA BOMBA
Clássico dos quadrinhos mundiais, Gen – Pés Descalços lança nova edição pela Conrad à altura de seu valor histórico

Por Paulo Floro
Da Revista O Grito!

Gen – Pés Descalços é uma das obras mais contundentes a retratar os horrores da bomba atômica jogada sobre Hiroshima, no final da Segunda Guerra Mundial. Mas, atravessou décadas sem ter o dévido valor reconhecido. Esta nova edição da Conrad mostra o quanto a obra envelheceu bem e que ainda serve como legado em cenas explícitas do que sofreram os japoneses após a destruição da cidades pelos americanos. E reafirma o valor da obra, que se tornou um clássico dos quadrinhos mundiais.

Gen é um trabalho autobiográfico e inicia nos momentos anteriores à queda da bomba, num Japão pobre sofrendo com a falta de comida enquanto insistia em manter a guerra no Oriente. A história foca no protagonista e sua família, que sofrem hostilidade por serem críticos ao patriotismo da vizinhança. Naquele momento, todos eram vítimas de uma campanha governamental para demonizar ocidentais e outros países inimigos, quando na verdade a guerra estava consumindo todos os recursos financeiros e naturais do país.

Por não concordarem com os conflitos, Gen e seus irmãos são surrados na rua, molestados na escola e sofrem perseguições de todo tipo. No momento da queda da bomba, a história ganha cores mais dramáticas com o relato em detalhes dos períodos imediatamente depois da explosão. Como Nakazawa viu de perto a catástrofe, seus traços chegam a ser perturbadores. Pessoas com a pele caindo do corpo, crianças em chamas pedindo água, com estilhaços de vidro por todo o corpo, se despedaçando e muitos soterrados.

O traço de Nakazawa conserva certo estilo infantil, que é usado para criar situações cômicas em diversas passagens da obra. Em outros momentos, esse desenho simples torna os detalhes do massacre causado pela bomba ainda mais evidente. Essa sinceridade do autor fez as pessoas acreditarem no que parecia impossível – um massacre covarde contra uma população indefesa sem chance de se defender e as consequências disso durante e depois da explosão.

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Com seu tom didático, Nakazawa também pendeu para uma idealização de seu poder de comoção. Ele acreditou que sua obra pudesse incitar as pessoas a prevenir o retorno do mal que a humanidade vivenciou durante o século passado. Por isso, norteou sua história com condescendências e maniqueísmo na construção de alguns personagens. Art Spiegelman, autor de Maus e um dos maiores entusiastas da HQ, mostrou esse tom otimista em seu prefácio incluído na primeira edição da Conrad.

“A fé de Nakazawa na possibilidade da bondade pode tachar o trabalho, sob alguns olhos cínicos, como simples literatura para crianças. Mas o fato marcante é que o artista está relatando a própria sobrevivência. Seu trabalho (…) enfatiza a necessidade de empatia entre os homens para que possamos sobreviver a outro século”, escreveu. O que podemos compreender do intuito do autor é evidenciar que a crueldade e as injustiças podem aparecer no cotidiano tanto quanto numa destruição nuclear. A brutalidade que Gen e seu irmão Shinji sofrem são colocadas em perspectiva mais á frente na trama, quando Hiroshima é atacada.

Esses episódios mostram que o horror da guerra é mesmo não concordar com ela. Gen – Pés Descalços serviu para mostrar as atrocidades da guerra a muita gente, sobretudo crianças. Ainda que carregue certa idealização, seu valor histórico é incontestável. Como a história é mostrada a partir de um garoto determinado e forte, Nakazawa quis fazer de Gen um trabalho humanista, relativizando as ações negativas do personagem e mostrando que é possível buscar a sobrevivência com dignidade e sem causar ainda mais sofrimento às pessoas.

Há uma crítica política ao comportamento japonês durante o período, e isso foi corajoso na época em que o livro foi lançado nos anos 1970, quando o assunto ainda era pouco discutido. Coloca em xeque uma suposta união do país em busca de uma nova identidade para as gerações futuras. Nos relatos de Gen, não há compaixão, dignidade ou solidariedade. Como acontece em momentos de crise, há desespero na velha luta de tentar viver. É uma abordagem realista e incômoda para a época.

Lançado em 1972 na revista Shonem Jump, o mangá seguiu sem muita repercussão até que o jornalista e editor Takashi Yokota mostrou interesse na obra. Como é contado no prefácio da segunda edição da Conrad, ele achou estranho que associações de vítimas e parentes das vítimas não terem se pronunciado sobre Gen. A publicação numa revista de grande circulação fez sucesso entre crianças, mas os adultos pareciam desconhecer. Yokota então trouxe à obra a uma discussão mais ampla na sociedade japonesa e chegou até a xerocar as edições para que fossem entregues a mais pessoas.

A obra chegaria no Ocidente dez anos depois, em 1982 pela editora Educomics com o título de I Saw (Eu Vi). Foi lá que encantou críticos e emergiu como uma das mais precisas e dolorosas obras sobre a bomba atômica. No Brasil, chegou no início dos anos 2000 pela Conrad numa edição compacta e editada para leitura no estilo ocidental, da esquerda para a direita. Os quatro volumes tornaram-se um sucesso, mas seguiam esgotados em muitos lugares. Agora, a Conrad decidiu republicar a série com o texto integral, leitura de trás para frente e em dez volumes.

E a edição é mesmo primorosa, com prefácios, textos introdutórios e novo design. É uma obra que merece ser lida para cumprir o intuito de Nakazawa: a humanidade não pode repetir aquilo que o garoto Gen viu.

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GEN PÉS DESCALÇOS VOL. 1 – O NASCIMENTO DE GEN, O TRIGO VERDE

Keiji Nakazawa (texto e arte)
[Conrad, 290 páginas, R$ 24,90]
Tradução: Drik Sada

NOTA: 8,5

gen pes descalcos 02GEN PÉS DESCALÇOS VOL. 1 – O TRIGO É PISOTEADO
Keiji Nakazawa (texto e arte)
[Conrad, 268 páginas, R$ 24,90]
Tradução: Drik Sada

NOTA: 8,0

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