O silêncio de Chernobyl

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Todas as fotos: Filipe Falcão.

Quando decidi ir a Romênia, para conhecer a Transilvânia, olhei ao redor para ver quais eram os países vizinhos. Eis que me deparo com a Ucrânia e imediatamente pensei em ir conhecer Chernobyl. Eu não tinha um motivo específico, mas provavelmente decidi ir porquê sempre escutei falar de Chernobyl e do desastre atômico, além dos mistérios e lendas envolvendo o lugar.

Da Romênia, eu estaria tão perto que logo fui pesquisar como seria uma visita a Chernobyl. Antes que eu me desse conta eu já havia comprado o “passeio”. Vou aspear a palavra passeio para não parecer que estou usando da mesma forma como faria caso fosse a um museu ou a um parque.

Antes é bom explicar que Chernobyl é o nome da central nuclear composta por reatores que fica ao norte da Ucrânia e que a mesma fazia parte da União Soviética na época. Quando Chernobyl foi construída, a cidade de Pripyat foi planejada para servir de moraria aos funcionários da usina. Então na verdade apesar de falarmos em visitar Chernobyl, na verdade passamos boa parte do “passeio” em Pripyat.

Visitar Chernobyl é uma experiência diferente de qualquer outra. A maioria das pessoas se choca ao saber que você esteve lá e logo fazem comparações com visitas a campos de concentrações. Eu já estive em um campo de concentração em Berlim e respondo com toda a certeza que foi a pior experiência da minha vida. Passei dez minutos e saí. Eu não consigo explicar de forma lógica o que senti, mas eu simplesmente fui tomado por uma tristeza profunda que me fez sair de lá quase que imediatamente.

Apesar do alto número de mortos, o que aconteceu em Chernobyl foi um acidente enquanto as pessoas iam para campos de concentração para serem assassinadas. Em Chernobyl, não tive nenhuma sensação negativa. Tampouco positiva. Acho que sensação que tive, se for necessário pensar em alguma, foi de solidão.

Bom, mas antes de falar de Chernobyl, é importante saber como chegar lá. O local fica cerca de duas horas de ônibus de Kiev, a capital ucraniana. Não se pode chegar em Chernobyl quando bem se quer. É necessário comprar o “passeio” com antecedência. Seus dados de passaporte são enviados para quem administra o “tour” que repassa as informações para o exército ucraniano. O grupo no qual fui tinha cerca de 15 pessoas. Ao chegar ao local, vigiado por militares, todos precisam descer para mostrar os passaportes.

O ponto onde descemos é a área na qual ficam os prédios residenciais de Pripyat. A sensação que tive foi de estar em um filme de terror ao colocar os pés em uma cidade fantasma. O mato e a vegetação tornam difícil ver todos os prédios. Não é permitido entrar nos edifícios. A guia explica que antigamente os visitantes roubavam itens das casas como souvenires. Uma sensação muito estranha é que todos os prédios residenciais possuem muitas janelas e ás vezes parece que estamos sendo observados.

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Uma sensação dos prédios é que ás vezes parece que estamos sendo observados.

Eu me afastei um pouco do grupo, algo que é proibido, e para minha surpresa me vi rodeado pelo silêncio. Pripyat é antes de qualquer coisa um local silencioso. Os guias dizem que não existem pássaros na área. Eu não lembro de ter visto algum, embora tenha visto alguns cachorros, embora não nesta primeira parada. Ali mesmo, onde eu estava, as árvores pareciam não se moverem com o fraco vento de modo a produzir ruídos. Ali, eu percebia apenas o barulho dos passos das pessoas.

Fiquei imaginando que com a saída do grupo, como aquele lugar deve ser totalmente silencioso e solitário. Pensei como seria o mesmo de noite. Infelizmente visitas a noite são totalmente proibidas. Decidi fazer as minhas fotos com esta ideia de silêncio e solidão além da ausência do elemento humano. Não queria que pessoas do grupo aparecessem nas minhas fotos. Tentei preservar a sensação que Chernobyl me passou. Fiz apenas uma foto minha em uma placa da entrada, mas não publiquei nem postei em nenhum lugar.

É incrível a sensação de que o tempo parou naquele lugar. Além da Ucrânia e Romênia, também estive na Bulgária e nos três países, todos da antiga União Soviética, mas em Pripyat foi o único lugar que vi uma estátua de Lenin. Todas as outras nos três países foram retiradas.

Começamos a caminhar. Somos alertados de que não devemos tocar em absolutamente nada. Antes do “passeio” recebemos emails explicando que devemos ir de calças e camisas com mangas longas. Fazemos boa parte do percurso caminhando. Isto significa andar no meio do bosque, o que é algo meio assustador não apenas pelo cenário de filme de terror, mas porquê pela vegetação ser grande em alguns trechos, naturalmente galhos batem em nossos braços e pernas quando caminhamos.

Ao chegarmos em prédios públicos como escolas, teatros e ginásios, entre outros, podemos entrar. E lá encontramos móveis, objetos, cadernos, roupas, brinquedos. Vi uma partitura próxima a um antigo piano e fiquei tentando imaginar qual música seria? O hino ucraniano? Ou uma música pop local? Não é permitido ninguém se separar do grupo e o tempo é milimetricamente cronometrado. Dez minutos em um prédio, vinte no próximo e cinco no seguinte. Salas de aula, escritórios, vestiários. Pela própria ação do tempo, tudo está destruído e existem muitos vidros e entulhos no chão.

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Começamos a caminhar. Somos alertados de que não devemos tocar em absolutamente nada.

De lá vamos também caminhando para o parque de diversões que nunca chegou a ser utilizado. De acordo com registros históricos, o parque ficou pronto um dia antes da tragédia. Lá temos a roda gigante amarela. É muito surreal estar naquele parque que talvez seja um dos lugares mais fotografados ou filmados sobre Pripyat quando vemos documentários ou matérias sobre o lugar. A mesma sensação de solidão e de silêncio de todo o dia se intensificou ainda mais em um lugar que é sinônimo de alegria e diversão. No parque, a sensação se potencializa.

Ao deixar o parque, mais uma vez caminhando, olhei para trás apenas para ver o topo da roda gigante desaparecer como um dinossauro que volta a dormir ignorando a presença dos que estão ao redor.

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Finalizado um dia antes da explosão, o parque de diversão nunca foi usado.

Depois de horas caminhando, pegamos o ônibus para irmos ao reator que provocou a tragédia. Esta talvez seja a parte menos interessante do ponto visual, uma vez que por ser coberto, não é possível ter a ideia de estarmos diante de um reator, mas sim de uma grande caixa metálica. Alguns cachorros aparecem. Apesar de mansos, não podemos tocar neles por precaução, dizem os guias. Ficamos poucos minutos e depois seguimos. Vamos ter mais uma duas paradas, mas sem nada realmente digno de memória.

Ao fim do dia estamos prontos para deixar Chernobyl. Passamos duas horas no ônibus de volta para Kiev. Cansados e impressionados, todos voltam em silêncio no ônibus. Ao chegar no hotel a primeira coisa que fiz foi tirar a roupa e tomar um demorado banho. Depois me deitei e fiquei olhando as fotos que fiz. De volta a um lugar vivo, com pessoas e barulho, ver as fotos de Chernobyl me fez pensar que estive em uma outra realidade, quase um parque temático invertido.

Naquela noite, permaneci um pouco em silêncio como se estivesse aos poucos devolvendo Chernobyl a um lugar distante e mais uma vez inatingível.

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O mato por vezes impede a visitação de alguns prédios.