Papo com Siba Carvalho, atração do No Ar: “a arte é nossa arma e estamos aqui para lutar”

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Foto: Divulgação.

Siba Carvalho foi buscar na ancestralidade a força para manter de pé seu trabalho autoral. Descobriu que em suas veias corre o sangue da tribo Puri. Sua música é muito pautada pela reivindicação, de tomada de território, de exaltação de legados.

A cantora e compositora é uma das atrações deste ano do festival No Ar Coquetel Molotov, que acontece dia 16 de novembro no Caxangá Golf Club, no Recife.

Sua música mais conhecida até aqui, “Direito Oficial”, busca uma nova perspectiva para falar da nossa história ao colocar em primeiro plano o ponto de vista indígena. Suas canções também trazem letras sobre feminismo e orgulho LGBTI+, sempre com uma espiritualidade bem presente. “A arte é uma arma de muita força. A elite opressora sabe o perigo que é uma mente consciente com um microfone na mão”, explica Siba.

Ela vem de Rio Doce, bairro que foi a terra do mangue beat e que hoje é celeiro de diversos novos artistas independentes. “Meu trabalho está ligado à relação de pertencimento e território, mas dessa vez vou retratar minha comunidade, o bairro de Rio Doce e a ideia é mostrar que a periferia ainda respira arte”, conta Siba.

Batemos um papo com a cantora sobre seus planos para o futuro, do poder da arte e de como será seu show no Coquetel Molotov.

Sua música é muito marcada por um resgate das tradições indígenas, uma ancestralidade que aparece em primeiro plano nas letras. Como foi colocar essas referências dentro do seu trabalho?
A decisão de abordar a luta indígena no meu trabalho se deu de forma muito natural. Desde criança eu sinto uma ligação muito forte com a cultura dos povos tradicionais. Sempre me atraiu bastante o modo de vida, a espiritualidade e a arte. Quando iniciei meu trabalho autoral, percebi que pouquíssimas pessoas falavam sobre a luta indígena e isso me incomodou bastante. Decidi então mergulhar nesse universo mais profundamente e nesse mergulho acabei me debruçando também na história da minha própria família e descobri que nas minhas veias corre o sangue do povo Puri. Fiquei muito feliz em descobrir minhas raízes mas também fiquei triste em perceber o processo de apagamento histórico que aconteceu dentro da minha e de várias famílias brasileiras. É um resgate diário da ancestralidade na minha vida e não poderia ser diferente no meu trabalho.

A questão identitária é uma luta muito urgente no Brasil atual, sobretudo por que a luta por direitos ainda tem muito a avançar. Na sua opinião, qual a contribuição que a música atual pode dar (não só em relação ao seu trabalho, mas no geral)?
A arte é uma arma de muita força. A elite opressora sabe o perigo que é uma mente consciente com um microfone na mão. Temos exemplos de grandes guerreiros que lutaram e usaram essa arma na ditadura vencendo a censura com muita inteligência . A música em especial é uma ferramenta de educação eficiente. Diversos novos artistas indígenas estão expressando sua indignação, gritando por justiça, igualdade e respeito. Eles influenciam jovens que os ouvem e esses vão atrás de informações sobre seus antepassados, buscam conhecer suas raízes e apoiar a causa. Vejo pessoas totalmente ignorantes sobre a questão indígena começando a abrir os olhos pra real importância desse povo pro país. No meio de tantos retrocessos, que não são recentes, eu ainda consigo ver esperança de uma transformação através da arte.

Seu primeiro EP tem muito de dub, reggae mas ao mesmo se conecta muito com uma música brasileira mais popular. O que você ouvia em casa e quais artistas mais te influenciaram?
Na música eu sempre fui uma esponjinha então minhas referências acabam sendo muito diversas. Meu avô sempre foi um amante da música brasileira, especialmente a nordestina. Já minha prima sempre que ia lá pra casa escutava os regueiros Dezarie, Bob Marley, Peter Tosh. Minha paixão pelo regional veio com meu estudo da percussão iniciado com o maracatu. Os artistas pernambucanos que mais escuto são Chico Science, Nação Zumbi, Caravana do Reggae, Coco de Toré Pandeiro do Mestre e Karina Bühr. As influências do rap vieram através dos meus amigos que sempre ouviam Racionais, Black Alien, Crioulo e Negra Li nos rolês e muitos deles também produziam suas músicas. Então intuitivamente fui absorvendo, misturando e reproduzindo novas criações.

Somos Um, o EP tem uma pegada de ancestralidade/espiritualidade muito forte, mas também traz um apelo de atenção ao meio ambiente. E nunca esse debate foi tão presente no Brasil (por conta das queimadas da Amazônia e destruição de rios etc). O que esse conhecimento tradicional pode nos ajudar a lidar melhor com o nosso ambiente?
Só poderemos lidar de forma harmônica com a Terra quando pararmos de tratá-la como algo externo a nós, como pura matéria sem vida, sem espírito. O pensamento tradicional nos inspira a olhar pra dentro e perceber que fazemos parte da natureza e ela não é nossa propriedade particular. Cuidar da natureza não é questão de ideologia e sim de sobrevivência. Por isso é tão importante enxergarmos que quanto mais nos afastamos desse pensamento, mais adoecemos física, espiritual e psicologicamente.

“Protagonista”, outra faixa de Somos Um, fala de homofobia e hipocrisia. Como é fazer música no Brasil hoje sendo LGBTI+?
Vivemos em um país ainda muito machista e homofóbico, então ser LGBTQI+ e cantar sobre isso é um ato de muita coragem. Como falei anteriormente, a arte é nossa arma e estamos aqui pra lutar. Percebo que hoje muitos artistas estão se juntando e cada vez mais essa pauta está ganhando força. Recentemente a cantora Bia Ferreira lançou um álbum chamado Igreja Lesbiteriana que particularmente achei sensacional e acredito que esse é o momento de ousar, de dar a cara a tapa mesmo, mostrar que estamos conscientes. É como digo em “Protagonista”: não mais nos calaremos diante daqueles que “em nome do senhor vem nos apedrejar”.

“Direito Oficial” tem uma letra linda, de reivindicação de um outro olhar de nossa história, colocando a luta pela terra como algo definidor do Brasil. Pode nos falar um pouco dessa composição?
Construí essa música na época que eu trabalhava no Museu do Homem do Nordeste e estudava Turismo na UFPE. Tava rolando uma exposição sobre a história e diversidade dos povos indígenas de Pernambuco e fiquei maravilhada, pois não sabia que aqui tinha tantas aldeias. Comecei a refletir sobre o fato de nós sabermos tão pouco a respeito dos povos originários, então comecei a pesquisar mais e li o livro Diga ao Povo que Avance de Kelly Oliveira. Logo depois veio a inspiração pra compor a música “Direito Oficial” e o interessante é que ela veio em formato de rap (até então eu não tinha feito nenhum rap na vida). A partir disso eu comecei a escrever meu TCC , mas a música ficou por um bom tempo guardada. Depois de um tempo eu sonhei que um Pajé me dizia que eu precisava construir um videoclipe que mostrasse a verdadeira história dos povos indígenas e ai eu gravei o som e o videoclipe dessa música retratando a luta do Povo Pankararu pela desintrusão dos posseiros de suas terras.

O que você está preparando para o futuro? Pode nos adiantar detalhes do disco de estreia?
Atualmente estou em processo de finalização de mais um videoclipe do meu próximo som que se chama “Fé e Medo”. Esse trabalho também está ligado à relação de pertencimento e território, mas dessa vez vou retratar minha comunidade, o bairro de Rio Doce (terra do movimento mangue-beat) e a ideia é mostrar que a periferia ainda respira arte através das atividades do coletivo Sarau da União, do qual faço parte. Sobre o álbum o que posso adiantar é que firmei uma nova parceria com a DJ e produtora espanhola Lemer que vem adicionar nessa mistura suas influências ciganas com ritmos vindos do outro lado do oceano. As bruxas estão vivas e unidas!

O que acha de tocar no Coquetel Molotov e o que você está planejando para o show?
Acho maravilhoso poder fazer parte de um festival tão lindo, tão bem feito e tão diverso como o Molotov. Fiquei bem feliz com o convite e estamos preparando com muito amor nosso repertório que promete mostrar a potência dos graves do Dub. Também vai ter uma participação bem linda e estou animada pra apresentar esse artista pra todos vocês.