Resenha: Lumberjanes é uma HQ com garotas incríveis e história autêntica de protagonismo feminino

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É impressionante como a cultura pop ocidental entronizou a perspectiva de grupos de homens jovens sobre diversos aspectos da vida e do mundo. Pense em todos os grupos em filmes e séries, de Caça-Fantasmas, passando por Goonies, Fica Comigo, até o recente hit da Netflix Stranger Things. São todas, inegavelmente, ótimas histórias, mas a repetição desse ponto de vista masculino chama atenção para a necessidade de novas narrativas. Por isso chama tanta atenção uma HQ como Lumberjanes, lançada no final de 2016 no Brasil: escrito, desenhado e colorido por mulheres e com um grupo de personagens (até o momento) todo formado por garotas. Uma HQ muito legal, prontinha para entrar na lista de séries juvenis icônicas.

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A história é centrada em um grupo de escoteiras em um acampamento onde precisam lidar com coisas sobrenaturais, fantásticas, o que inclui raposas de três olhos, mulher-ursa, cavernas secretas, anagramas, além de desventuras típicas de narrativas sobre adolescência, o que inclui relacionamentos e amizade. Tudo isso com personagens bem construídos e uma trama divertida lotada de elementos que estão sempre no limite do absurdo.

Ainda que as autoras não tenham, ao menos deliberadamente, decidido fazer da série um “recado” para a carência de autoras ou a falta de representatividade, etc, o fato é que isto acabou fazendo muita diferença no resultado final e também na expectativa gerada no mercado editorial de comics. Escrita por Noelle Stevenson, da ótima Nimona e por Grace Ellis, estreante em HQs e desenhos de Brooke Allen, o gibi ganhou diversos prêmios, presença em listas de melhores do ano e recentemente até um crossover com o título adolescente Academia Gotham, da DC Comics. Há ainda uma adaptação ao cinema sendo desenvolvida.

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Lumberjanes recupera elementos típicos de obras de formação (os chamados “coming-of-age“), centrados no desenvolvimento psicológico e afetivo de um grupo de personagens. Estão lá a nostalgia, o tom aventuresco/fantasioso e o humor, mas agora sem que ninguém precise perguntar: onde estão as garotas? Aos 24 anos e dona de dois Eisner Awards, Noelle Stevenson já fez muito pela visibilidade das mulheres nos quadrinhos e por uma representatividade mais positiva. É ela a criadora do Hawkeye Initiative, onde desenhou o Gavião Arqueiro nas mesmas poses hiperssexualizadas destinadas às super-heroínas. Com Lumberjanes Noelle transformou essa frustração em uma obra rica, divertida e que, para variar, não temos a perspectiva masculina.

Como leitor, é revigorante ver uma história de acampamento em que as personagens mulheres não estão usando shortinhos e blusinhas e sensualizando para os homens do grupo. Além disso, todas tem nome e tratam de assuntos diversos que não arrumar alguém para ficar. As garotas escoteiras de Lumberjanes tem profundidade o bastante para que diversos leitores se relacionem com ela, e isso, acreditem, é muito relevante. Para incluir um lugar de fala importante sobre a importância da representação deixo aqui o comentário da escritora Carlyn Hill no TheMarySue: “Eu não quero uma história que grite ‘OLÁ, SIM SUA DEMOGRAFIA ESTÁ INCLUÍDA’, eu quero uma boa história com personagens femininas que eu possa me relacionar e Lumberjanes é bem isso”.

Não só Lumberjanes tem um raro protagonismo feminino dentro da indústria dos quadrinhos como aposta ainda em uma diversidade que vai além do cisgênero hétero já tão explorado. Uma das personagens principais, Jo, é uma mulher trans com um talento nato para matemática. É uma história autêntica, inusitada e que reforça a história de amizade e apoio entre as mulheres.

Lumberjanes tem um dos melhores números de estreia de um título em tempos recentes. Em vez de gastar páginas para apresentar os personagens ao público para só então desenrolar a trama, o gibi já abre em uma sequência na floresta que envolve uma luta com o que parecem ser raposas de três olhos. As protagonistas Jo, April, Mal, Molly e Ripley estão bem longe de seu alojamento e precisão encontrar um meio de se safar de uma punição da diretora Rosie e de uma bronca da monitora Jen. Quando as garotas começam a explicar a história de como foram parar ali é que a história começa a tomar forma.

Os capítulos seguintes mantém o ritmo da trama em velocidade constante, sempre recheados de elementos bizarros que são típicos das narrativas juvenis de aventura em acampamento. Pelo estilo do desenho e da imaginação nonsense Lumberjanes remete bastante à Hora da Aventura, bem mais do que filmes como Goonies, de quem herdou sobretudo a nostalgia. Além disso o estilo do traço, bem cartoon, consegue realçar a personalidade de cada personagem e dar uma vitalidade que torna a leitura viciante.

A edição brasileira traz extras, textos relacionados à trama, uma galeria de capas e esboço dos personagens, um material farto para ajudar a instigar o surgimento de fãs da série aqui no Brasil. O que será mais do que merecido. E esperamos que ninguém chame a série de “Goonies feminino” quando a adaptação cinematográfica estrear.

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