A chegada de Eternauta ao Brasil

Germán Oesterheld Solano López El eternauta Parte 1 1957 01

ESPERA DO ETERNAUTA
Morte de Solano López, desenhista de O Eternauta, torna a obra ainda mais relevante no Brasil e nos lembra quando ainda é pobre o intercâmbio com quadrinhistas argentinos

Por Paulo Floro
Da Revista O Grito!

Em Buenos Aires, nem sempre é fácil encontrar o primeiro volume da HQ El Eternauta, muitas vezes esgotado em algumas lojas. Uma das mais importantes obras dos quadrinhos argentinos tem uma importância que não encontra paralelos no Brasil, no que diz respeito à relevância e reconhecimento. Aplicadas em escolas, é a única historieta comprada pelo Ministério da Educação da Argentina. Teve diversas versões editadas desde que foi lançada há mais de 50 anos, várias delas piratas. E seu autor Hector German Oesterheld é ainda herói da luta contra a ditadura no País, o que o lançou na clandestinidade e culminou com sua morte na segunda metade da década de 1970. O desenhista da série, Francisco Solano López morreu na última sexta (11) em decorrência de uma hemorragia cerebral. O primeiro volume do quadrinho está previsto para chegar nas livrarias brasileiras neste segundo semestre pela Martins Fontes, depois de décadas desconhecido por aqui.

Publicada ao longo de dois anos na revista Hora Cero Semanal a partir de 1957, O Eternauta relata a invasão de Buenos Aires por forças alienígenas no ano de 1963. Uma neve fluorescente que mata ao contato com a pele abre caminho para a dominação extraterrestre. Os seres conhecidos como “Ellos” nunca são mostrados e desenrolam o ataque e dominação através de monstros conhecidos como Cascarudos, semelhantes a escaravelhos gigantes e os Manos, um povo conquistado, que auxilia na dominação da Terra. Tudo é contado por um sobrevivente, Juan Salvo, que entra acidentalmente em uma máquina que o transporta para outras dimensões e épocas, o “Eternauta” do título. Num exercício de metalinguagem, ele volta para 1959 e conta detalhes sobre o futuro sombrio ao autor, Oesterheld para que ele possa avisar aos leitores do que estar por vir.

Eternauta

Desenhado por Solano Lopez e mais tarde por Alberto Breccia, Eternauta ganhou admiração dos leitores por mostrar em detalhes locais bastante conhecidos de Buenos Aires e por misturar referências do contexto socio-político da época nas histórias. Ainda que seja interessante apenas no aspecto puramente da aventura, o livro conseguiu uma conjuntura que o tornou relevante para toda uma geração. No roteiro ainda é possível traçar leituras que identificam os diversos estratos da sociedade argentina do período, representado por Salvo e seus companheiros, que parecem a todo momento lutar por algo que parece impossível de vencer. É nesse momento que o autor consegue deixar explícito o verdadeiro herói da história. “O verdadeiro herói de El Eternauta é um herói coletivo, um grupo de homens. Isso reflete, embora sem intenção prévia, as minhas convicções: o único herói válido é o herói ‘em grupo'”, salienta o próprio Oesterheld.

O escritor de quadrinhos argentino Carlos Trillo escreveu em uma das reedições comemorativas da obra: “não é preciso ser um grande caçador de metáforas para associar os Ellos com os militares que tomaram o poder”. Uma segunda versão publicada em 1969, com Breccia e a segunda parte em 1976 são mais explícitas na sua proposta de fazer referências ao regime. No Brasil, a obra nunca chegou a ser publicada. Com ditaduras contemporâneas e compartilhando períodos de forte repressão, o lançamento por aqui tem um elemento a mais para se fazer relevante. “É difícil dizer o impacto que “El Eternauta” terá no Brasil. Acredito que o primeiro apelo seja por meio da história trágica do escritor. Isso tende a atribuir um valor extra à obra”, segundo explica Paulo Ramos, professor do curso de letras da Universidade Federal de São Paulo e autor de Bienvenido – Um Passeio Pelos Quadrinhos Argentinos. “É um trabalho muito bem escrito e inovador, e com o diferencial de já dialogar com o leitor adulto no fim da década de 1950”.

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Solano Lopez, morto na última sexta.

Apesar de serem vizinhos, o intercâmbio de influências no universo dos quadrinhos entre Brasil e Argentina é baixo, com cada país trabalhando em tradições artísticas bem distintas. “Os argentinos tem uma tradição de roteiro muito antiga, ao contrário dos quadrinhistas brasileiros, mais ligados ao humor e terror”, opina o desenhista e escritor Danilo Beyruth, autor de Bando de Dois. “Apesar de termos muitas similaridades, o mercado de HQ dos dois países é praticamente invisível para ambos”, diz.

Ainda que seja considerado um clássico por sua força narrativa e engenhosidade do roteiro, O Eternauta tornou-se um espécie de símbolo portenho por estar sempre associado à trágica história de seu autor. Filho de pai alemão, Oesterheld trabalhou como jornalista até se firmar como roteirista de HQ em diversas publicações. Opositor da ditadura militar, entrou para a clandestinidade por volta de 1976, de onde continuou seus trabalhos. Na segunda metade da década de 1970 foi sequestrado pelas forças armadas, assim como suas quatro filhas, genros e netos. Alguns pesquisadores acreditam que seu desaparecimento deve-se à biografia em quadrinhos do líder Che Guevara em que trabalhava e a segunda parte do Eternauta, com um conteúdo político mais explícito e panfletário, que assim como não agradou aos críticos irritou ainda mais a ditadura.

Oesterheld, esse desconhecido, deixou legado para gerações de artistas em seu País. E sua morte originou diversas homenagens em sua memória. Um dos primeiros e mais conhecidos veio em 1983, logo após o fim do regime militar. O artista Félix Saborido publicou na revista Feriado Nacional uma ilustração que se tornou célebre. Nela, diversos personagens criados pelo autor estão reunidos sob um cartaz que pergunta: “¿Dondé está Oesterheld?”. Descendo o metrô da estação Uruguay, em Buenos Aires, um enorme mural com a versão de Alberto Breccia de El Eternauta lembra que nossos vizinhos hermanos fazem questão de lembrar de seu herói mais famoso daqueles tempos de luta.

El Eternauta

* Este artigo foi originalmente publicado pelo autor no suplemento cultural Pernambuco.