A mulher como gênero na trama policial de O Mecanismo

Carol1
O'Mecanismo

Carol 1

É muito raro que uma série policial brasileira tenha protagonismo feminino. O Mecanismo é um desses casos. A delegada Verena Cardoni, interpretada por Carolina Abas, inspirada por Erika Marena, que teria criado a alcunha de Lava Jato, é uma personagem com densidade, nuances,  que é capaz de ser rígida, cumprir seu papel profissional com eficiência, e se apaixonar, preferencialmente pelo homem errado, interpretado no caso por Claudio Amadeu (Lee Taylor). É ela quem brilha ao lado de Selton Mello, o Ruffo, que se torna uma referência para a amiga Verena.

Os filmes noir consagraram a femme fatale como um novo modelo de protagonismo feminino, deixando a imagem de vilã para trás. Eram elas os objetos de desejo dos mocinhos-galãs em conflito com seu papel tradicional numa sociedade patriarcal. O filósofo Fredric Jameson cita o surgimento da mulher parceira, em geral amiga, assexuada, e funcionária exemplar da corporação como outra vertente possível dentro das narrativas policiais. Essa nova mulher é ameaçadora, daí essa dificuldade de representação. A delegada Verena tem um pouco de cada característica, mas é de carne e osso.

Os delegados da Polícia Federal e a própria ambientação da delegacia, as cenas de ação, mescladas à vida de cada um, são bem delineadas.  E lembram os melhores momentos das duas sequências de Tropa de Elite, e Narcos, trabalhos anteriores do diretor.

RuffoInss

A expressão de Ruffo no INSS,  perplexo e revoltado diante de uma aposentadoria que deixa  a desejar, ao final de uma árdua carreira, traduz com propriedade não somente o seu drama pessoal, mas o cotidiano de milhares de brasileiros, e evidencia a falência de instituições que supostamente deveriam contribuir para amparar seu cidadãos nesse momento. O doleiro Alberto Youssef/Roberto Ibrahim composto por Enrique Diaz tampouco compromete, e sua habilidade de seduzir  políticos pouco empenhados em fazer algo mais do que desfrutar de uma situação de foro privilegiado é adequada. Nada de espetacularização ou rigidez estereotipada. O bandido de colarinho branco, quem diria, é um bom pai.

Os problemas surgem quando a série decide mostrar os bastidores do poder. A representação de Lula e Dilma, realmente, é patética, capaz de deixar qualquer estudante ruborizado. O aviso de que qualquer semelhança com os fatos reais é mera coincidência também soa estranho, uma vez que o roteiro foi baseado no livro-reportagem O juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, do jornalista Vladimir Netto, lançado em 2016. Os personagens de Lula e Aécio Neves, na série José Higino (Arthur Kohl) e Lucio Leme, respectivamente, são caricaturais. E a presidenta precisava se chamar Janete? Janete

Segundo os cânones do cinema nacional, é nome de piriguete, condição realçada pela interpretação quase satírica de  Sura Berditchevsky.  O que de resto afeta a composição das demais personagens femininas da série que personificam os demônios de Padilha: a marqueteira vivida por Maria Ribeiro, as prostitutas de Ibrahim. Mas essas opções se prestam a um roteiro que vê governos e grandes empresários de forma totalmente maniqueísta, e a mídia como a grande culpada pelos transtornos de um país que não consegue atingir a maturidade. E os nomes fantasia das corporações não ajudam muito a desfazer o imbroglio. A Polícia Federal se torna Polícia Federativa; o Ministério Público é chamado de Ministério Federal Público; a Odebrecht, de Miller & Bretch; e a Petrobras se torna PetroBrasil. Os personagens dos policiais e a ambientação das delegacias mereceram sorte melhor, são mais verossímeis.

O final da sequela de Tropa de Elite deixava entrever esse problema, mas ali Brasília funcionava como a criança recém-nascida de O Bebê de Rosemary. Tudo que é sugerido, imaginado, é mais instigante. As séries e filmes brasileiros possuem escassa tradição de representar o poder de forma convincente. Generais, presidentes, são quase sempre sombras fugidias. Na hora de discutir o governo e a  política nada como um bom e, por vezes,  enfadonho filme histórico que remeta à monarquia, à colônia e ao inimigo comum – no caso Portugal. A narrativa se dá sempre a partir do ponto de vista do oprimido, do vencido. O thriller de George Moura Getúlio, dirigido por João Jardim, é um dos raros exemplos recentes de uma obra ficcional que busca retratar um estadista popular com mais complexidade.

JonathanHaggensen

Os problemas da  plataforma de streaming Netflix, considerada a oitava maior empresa de audiovisual do mundo, quando se trata de produzir séries e filmes regionais e ao mesmo tempo, transnacionais, são conhecidos. A série de Padilha, pela sua repercussão entre setores da esquerda e da crítica de cinema brasileiros – Lula chegou a declarar que iria processá-los e houve mobilização para uma campanha pelo cancelamento de assinaturas -, é um dos exemplos. Desde o anúncio do veto de Cannes às produções da Netflix pelo festival, entretanto, vem pipocando notícias diversas sobre as agruras da rede em desenvolver produtos interculturais sem ofender ninguém ou causar polêmicas. Difícil. Na verdade, o problema vai um pouco além. Não são os desvios ideológicos derivados da (má)  ficcionalização da realidade que contam, nem os diálogos trocados, que colocam a fala de Romero Jucá na boca do ex-presidente de mentirinha. Afinal ninguém se preocupou com o pastiche de Rio de Janeiro exibido pela trilogia de vampiros adolescentes Crepúsculo e por Velozes e Furiosos 5, regiamente pagos por essas inserções.  Nem mesmo as ridículas lojinhas anticorrupção espalhadas pelos aeroportos a título de campanha.  Trata-se de sua insipiência ao retratar a elite política e empresarial e do carácter reducionista de sua trama. Quanto mais a série tenta aprofundar a questão do processo de lavagem de dinheiro e da corrupção no Brasil, pior fica.

O que falta para termos obras como Z (1969), de Costa Gavras, O Caso Mattei (1972) de Francesco Rosi, ou Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita (1970) de Elio Petri?  Os seriados brasileiros já conseguem retratar a favela sem parecer que é cidade cenográfica. Os policiais deixaram de ser aqueles sujeitos que entram pelas portas dos fundos para limpar a sujeira dos ricos e dos quais a gente mal se lembra, mérito que na televisão nacional começou em O Rebu e que no cinema é mais claudicante, mas se faz sentir cada vez mais em produções como Operações Especiais (2015) Alemão (2016), minissérie e filme, e Polícia Federal – a lei é para todos, que se prepara para lançar o segundo filme da trilogia, na mesma linha da série de Padilha. A série O Mecanismo não consegue ir além dos trabalhos anteriores do diretor ao abordar a corrupção e a política no Brasil. Apenas um bom thriller de ação. Em que pese a inclusão de personagens (reais, diga-se de passagem) que não costumam integrar as narrativas do gênero, como o investigador japonês “China” (Fáio Yoshihara), que representa o policial Milton Ishii, Wilma Kitano (Alessandra Colassanti) é inspirada em Nelma Kodama. O único funcionário negro da PF, Vander (Jonathan Haagensen), aparentemente foi criação ficcional. Mas é interessante, sobretudo por colocar em cena um ator quase sempre relacionado ao mundo das drogas, por seu papel de Cabeleira em Cidade de Deus.

 

bechdelbrasilchavezperez