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Mesa com edições antigas da Ragu: publicação marcou cenário de quadrinhos BR. (Foto: Paulo Floro).

A saga da revista Ragu

A história oral da publicação pernambucana que fez história ao trazer uma sofisticação e experimentação estética até então inédita no mercado de quadrinhos

Aviso importante: A revista retorna ao mercado de quadrinhos neste mês de julho, em uma nova edição com mais de 40 artistas e com edição minha, de Paulo Floro e dos fundadores da Ragu, Lin e Mascaro. Esta reportagem saiu originalmente na primeira edição da Plaf e, além do registro histórico de uma das mais importantes publicações de quadrinhos do Brasil, era também uma homenagem nossa a esses conterrâneos pioneiros.


Numa sexta-feira pela manhã, sol a pino como de costume, íamos Paulo Floro (também editor da Plaf) ao volante, eu no banco do carona, e Christiano Mascaro, no banco de trás, para o ateliê de João Lin, em Ouro Preto, Olinda. Matamos os pouco mais de vinte minutos do Bairro do Recife Antigo tentando conciliar as indicações de caminho dadas por Lin com aquelas que o Waze nos informava. E aí então – ôpa, volta, a entrada era aquela – e chegamos.

Queríamos conversar com os dois designers, ilustradores, artistas plásticos e quadrinistas para que eles pudessem nos contar como vieram a criar aquela que continua sendo a publicação mais importante das histórias em quadrinhos pernambucanas – e uma das mais relevantes do Brasil: a Ragu.

Lin mora em enorme terreno, uma chácara na zona rural de Olinda, sem áreas asfaltadas e que aparenta ter sofrido o mínimo possível de intervenções na abundante vegetação nativa; estradinhas de terra cortando a grama sob enormes e frondosas árvores. A área é compartilhada por várias casas – “aquela ali é de um dinamarquês, vem pra cá só no verão”, aponta Lin em certo momento. Já a dele fica em um dos pontos mais altos do terreno, um sobrado de dois andares que abriga o estúdio/ateliê no pavimento mais alto. Enquanto subíamos as escadas e Lin nos mostrava a casa, percebia que os dois, num daqueles clichês da vida, eram completamente diferentes – e que talvez por isso tenha funcionado tão bem como a dupla que criou a Ragu: Mascaro, mais alto, é mais falante, gesticula mais, emenda ideias; Lin, mais baixo, de gestos mais suaves quando verbaliza baixinho aquilo que parece ter pensando por um bom tempo.

As diferenças e complementaridades entre os dois ficam evidentes até mesmo em suas respectivas trajetórias. Caminhos diferentes que, numa encruzilhada fortuita, criaram algo único.

Mascaro é formado em Jornalismo e também estudou pintura na Universidade de Montreal. Foi editor de arte do jornal Diario de Pernambuco durante 17 anos, onde também publicou suas tiras. Participou da coletânea espanhola ConSecuencias e assinou uma das histórias do livro MSP 50, primeiro de uma série em que quadrinistas reinterpretavam personagens da Turma da Mônica. Suas ilustrações estamparam as páginas de revistas como Playboy, Exame e Superinteressante e Caros Amigos. Além disso, tem um trabalho de pintura, em suas palavras, “quase autista”.

Já Lin começou seu caminho nas artes através do teatro de rua. Foram dez anos em um projeto “popular, engajado e político”. Depois disso, passou a experimentar com a escultura em concreto – trabalho, segundo ele, mais comercial, voltado para os edifícios que são obrigados por uma lei municipal do Recife (aqueles com mais de mil metros quadrados) a terem uma obra de arte em seu terreno. Desistiu porque pagavam mal. Depois disso, passou a se dedicar mais ao desenho, ilustrando também revistas de circulação nacional e livros infantis – mas sem deixar de lado a experimentação, fosse em forma de vídeos ou de poemas. E agora, se aventura na música – apresenta a performance visual Inconsistência, Acaso e Erro ao lado de Hassan Santos.

“A Ragu surpreendia por seu cuidado com o acabamento gráfico, numa época em que o quadrinho brasileiro independente tinha dificuldades para se destacar nesse aspecto”.

– Mascaro.

Mesmo a ligação com os quadrinhos se deu de forma diferente. “Eu sou o que sou por causa dos quadrinhos”, afirma Mascaro, empolgado. Foi com as páginas dos gibis – passando, conforme crescia, da Turma da Mônica à Metal Hurlant – que se deu sua primeira experiência de transcendência artística. 

“Meu trabalho como designer, como diagramador, aprendi tudo com os quadrinhos.”  Lin, por sua vez, não era leitor de quadrinhos e nunca deu bola pra turma de Maurício de Sousa. Mas foi a geração da Circo – Laerte, Angeli e Glauco – que chamou sua atenção para os gibis, “e por causa da questão política”, ele ressalta. “Era um pensamento político que ia além da democracia representativa e chegava à política do cotidiano. Foi quando vi que era possível fazer esse tipo de discurso através do desenho” – apesar de o humor hoje não ser uma característica de seu trabalho. Quando conheceu Mascaro, passou a ter mais contato com as influências estrangeiras, como as antologias da Drawn & Quarterly. Mas conta, com um leve sorriso despreocupado, que ainda hoje não é um leitor voraz de quadrinhos.

A saga da Ragu

Mas vamos do começo: os dois se conheceram em 1999, através de um amigo em comum – Romildo Araújo Lima, ou simplesmente Ral, editor do Diário de Pernambuco. Foi ele quem, aos poucos, construiu a ponte que viria a unir Lin e Mascaro, constantemente falando sobre como iriam apreciar o trabalho um do outro e precisavam se conhecer. Na época, Lin trabalhava no Diario como ilustrador, mas acabou se mudando para Natal – sendo substituído justamente por Mascaro. A insistência de Ral foi criando o interesse mútuo pelo encontro, que aconteceu quando Lin voltou ao Recife. 

E Ral tinha razão: os encontros promoveram a troca de ideias que geraram a admiração mútua e a vontade de juntos criarem algo novo no cenário de quadrinhos – apesar de nunca terem realmente se aventurado no campo. Mascaro havia produzido histórias, em suas próprias palavras, “tosquinhas”, durante a adolescência, para fanzine; enquanto Lin tinha experimentado apenas algumas poucas histórias de uma página voltadas para exposições em salões de humor. Feito de muita instiga, nascia a Ragu, subsidiada pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura, para os íntimos).

A primeira edição – na verdade chamada de Ragu 0 –  foi lançada em março de 2000 e teve uma tiragem de mil exemplares. A revista teve, no total, oito números. Os quatro primeiros números da Ragu foram financiados pelo Funcultura (da zero à três, lançadas trimestralmente até março de 2001). Já os números 4 (dezembro de 2002)  e 5 (junho de 2003) foram financiados através do Sistema de Incentivo à Cultura da Prefeitura do Recife. Os números 6 (janeiro de 2007) e 7 (agosto de 2009), mais robustos – principalmente o 7, um calhamaço de 240 páginas em capa dura –, foram novamente financiados pelo Funcultura, em projetos apresentados separadamente.

A partir do quinto número, a revista passou a contar com mais páginas – para atender às reclamações de que a revista demorava para sair e, quando saía, era lida em 10 minutos. Pulou das habituais 40 para 80 páginas, nos números 4 e 5; o seguinte, contou com 100 páginas; e a célebre sétima edição, 240.

O sexto número foi o primeiro a contar com uma colaboração estrangeira, com a publicação de duas histórias do alemão Hendrik Dorgathen. Mascaro conta que no livro pelo qual tomou conhecimento do trabalho de Hendrick, havia o contato dele. Ele então enviou uma das edições da Ragu, com um convite a Dorgathen para participar da edição seguinte da revista. A resposta: um CD contendo várias histórias para serem publicadas. A robustez da Ragu 7, inclusive, se deve entre outros fatores à vontade de contar com mais autores estrangeiros – principalmente de países latino-americanos como Peru, Bolívia e Cuba, com quem Lin havia travado contato durante a participação em diversos festivais, como o Viñetas con Altura. As exceções ficaram por conta dos espanhóis Braz e Vásquez. 

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O tamanho da sétima edição, aliás, pegou o público de surpresa, tendo grande repercussão – o que fez com que seja quase impossível encontrar um exemplar hoje em dia. Além da vontade de contar com mais autores estrangeiros, também havia a vontade de poder dar espaço a histórias mais longas sem que a revista acabasse com menos trabalhos por causa disso. A vontade de fazer ainda mais experimentações, é claro, também falou alto na hora de definir a quantidade de páginas. “Ali, sim, a gente teve a pretensão de fazer uma edição fuderosa”, disse Mascaro. E conseguiram. 

A Ragu surpreendia por seu cuidado com o acabamento gráfico, numa época em que o quadrinho brasileiro independente tinha dificuldades para se destacar nesse aspecto pelos altos custos envolvidos na produção. “Olhando hoje, a gente percebe que as revistas tinham um design um pouco limitado”,  afirma. 

“Tínhamos muito esse retorno, de que a revista apresentava um diferencial gráfico.” Esse desejo levou às diversas experimentações que se encontram nas páginas da Ragu: jogos de texturas, filtros, fotografias. A ideia era subverter as expectativas. Tudo pautado pela liberdade, tanto estética quanto temática. 

A ideia era mostrar também que Pernambuco possuía artistas gráficos de qualidade; tentar desequilibrar um pouco a balança da produção nacional de quadrinhos, pendendo majoritariamente para Rio de Janeiro e São Paulo, deslocar um pouco das atenções para o Nordeste: marcar território. “Não é porque a revista é produzida em Pernambuco que a gente tem que fazer quadrinho de cangaço”, Mascaro ri, enquanto os dois se lembram das reações de espanto de leitores e artistas ao tomarem contato com a Ragu e descobrirem que se tratava de uma revista pernambucana.

Lin ressalta que fazer a revista nos moldes em que eles imaginavam só foi possível graças à aprovação nos editais de incentivo promovidos pelo Funcultura. “Esses mecanismos são muito importantes”, reforça Mascaro. “Estamos há anos-luz de mercados como o europeu ou o argentino, e se não houver esses incentivos, nunca vamos chegar lá.” Lin ressalta que a maioria da produção experimental, em qualquer expressão artística, tem a necessidade de apoios dessa natureza. “É preciso, sim, que haja um modo de se fazer esse tipo de projeto que não careça de incentivos; mas também é preciso que esse tipo de projeto surja através de incentivos. Ambos devem coexistir e não podem negar um ao outro”, conclui.

Apesar disso, eles afirmam que o projeto era despretensioso. O mais importante era o tesão de fazer uma revista em quadrinhos: criar seu material, receber o de outros artistas, trabalhar o processo de edição de um novo número. E ao longo do tempo, a Ragu construiu um invejável leque de colaboradores – artistas novos e veteranos, que já eram admirados tanto por Lin como por Mascaro. Quadrinistas e ilustradores como Eloar Guazzelli, Jaca, Henrique Kipper, Fábio Zimbres, Lelis, Cau Gomez, Osvaldo Pavanelli… além da prata da casa, claro, como Greg, Raoni Assis, Clériston, Flavão, entre outros.“Ver esses caras empolgados em participar da Ragu foi um dos maiores retornos que a gente teve. Foi nosso grande mérito”, afirma Mascaro, claramente orgulhoso. “Não sei se o Guazelli vai lembrar, mas um dia ele me disse ‘olha, voltei a fazer quadrinhos por causa da Ragu’”. Nós perguntamos. Ele lembra, sim (dá uma olhadinha no box ao fim da revista).

Mas a maior dificuldade enfrentada pela Ragu abre espaço, nessa história, para um pouco de lugar comum: a distribuição – um problema que insiste em perdurar, seja ou não para revistas independentes, que dependem de um serviço monopolizado, caro e deficiente. Tentando contornar esse empecilho, a primeira parceria da Ragu para ser distribuída fora do estado foi com a Mapas e Mapas, de Minas Gerais. “A gente mandou muita revista pra eles, mas não teve o controle disso. E acabamos levando um cano”, conta Mascaro. 

Depois, uma tentativa com a paulista Via Lettera, que segundo Mascaro, nunca prestou contas quanto às vendas. Já a Opera Graphica, para eles, foi quem mais ajudou a aprimorar o alcance da revista. Mas Mascaro especula que nenhuma das distribuidoras e editoras realmente apostaram muito na revista, já que ela não tem um formato necessariamente comercial. “Acho que essas parcerias aconteceram mais no sentido de ocupar um espaço que parecia crescente, de um quadrinho brasileiro autoral em formação; porque viável comercialmente, realmente, o projeto não é; daí, se der certo, já tá com um pé dentro”, especula Mascaro.

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João Lin em seu ateliê em Olinda ao lado de Mascaro. (Foto: Paulo Floro/OGT!)

Projetos paralelos

Ainda em 2003, Mascaro e Lin começaram a sentir que a Ragu já não cabia mais em si – talvez eles não coubessem mais em si mesmos, nem apenas em uma revista. E o projeto começou a se desdobrar. O primeiro “spin-off” foi a Ragu Cordel, em 2003 – feito sem grande aporte financeiro. As duas edições eram formadas de pequenas caixinhas contendo livretos (a primeira, com seis; a segunda, publicada em 2011, com doze). Dois anos depois, em 2005, a Ragu criou mais pernas. Antes do boom de adaptações literárias em histórias em quadrinhos, causado pela inclusão massiva de obras do gênero no Programa Nacional de Bibliotecas Escolares, Mascaro e Lin já haviam percebido o potencial dessas histórias – inclusive já tendo produzido algumas para a própria Ragu.

Assim, os dois criaram a Domínio Público, juntamente com o jornalista Mário Hélio (um dos fundadores da Continente, revista pernambucana de cultura). Foi ele o responsável pela seleção dos textos a serem adaptados e, nas palavras de Mascaro, pelo “embasamento literário que deu estofo ao projeto”. Cada história contava com um pequeno texto assinado por Hélio, contextualizando a adaptação. A revista teve dois números que, em 2008 e 2010 (adaptações de contos nacionais e estrangeiros, respectivamente), ganharam uma nova roupagem pela editora DCL e passaram a integrar o PNBE. A vantagem: tiragens maiores – mas que não necessariamente se traduzem em qualquer ganho financeiro, visto que os exemplares são adquiridos pelo governo a 25% do valor de capa.

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Foto: Victor Jucá.

Apesar disso, o maior intuito de Lin e Mascaro com a Domínio Público era criar algo diferente das adaptações literárias em quadrinhos que começavam a circular – hoje, temos o conhecimento de que a maioria delas tem um nível artístico baixíssimo; histórias feitas tão somente para surfar o hype da pretensa “facilitação dos clássicos” que fez desse tipo de histórias em quadrinhos a preferência de compra para o PNBE – e uma boa fonte de renda para as editoras. A ideia da Domínio era tomar o rumo contrário: fugir do usual, do piloto automático, do “careta”. Certas adaptações nem mesmo contam com texto. Outras tiveram suas histórias originais livremente adaptadas por Mário Hélio. 

O futuro

O impacto da revista, que teve histórias premiadas (“Labirinto”, de Lin, e “Um Mate Simples”, de Mascaro, que saíram no no 3, ganharam o primeiro e o segundo lugares, respectivamente, no XII Salão Carioca de Humor, em 2000) e virou objeto de estudo acadêmico é sentido até hoje. Ambos contam que sempre foram perguntados sobre o retorno da revista, seja no Recife ou em outros estados. Se não houvesse a Ragu, talvez eu e Paulo Floro não tenhamos escutado tanto “onde estão os quadrinhos de Recife?” nos últimos dois FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos, em Belo Horizonte).

A antologia retorna em 2021, mais de 20 anos depois de seu primeiro número, com a mesma proposta artística de destacar trabalhos experimentais, inovadores e que dialogam com questões atuais. A edição sai pelo selo Cepe HQ, da Cepe e tem 160 páginas.

A ideia é que a revista retome sua periodicidade, com uma edição ao ano. Além disso também está nos planos a disponibilização de versões digitais das edições anteriores

Outro projeto para a vindoura retomada da Ragu é o lançamento de livros solo. Até então, todos os projetos sob o guarda-chuva que se tornou a Ragu foram trabalhos coletivos. Uma das ideias para o futuro da Ragu, portanto, é abrir o leque mais uma vez, comportando histórias que desenvolvam ainda mais a autoralidade. Livros com histórias mais longas, tanto de Lin e Mascaro quanto de outros autores, pernambucanos ou não, que já participaram da Ragu. Retomar projetos mais simples, como a Ragu Cordel, também está nos planos dos dois criadores.

Dois criadores indubitavelmente talentosos, várias ideias promissoras. Sorríamos a cada ideia que Lin e Mascaro soltavam, pensando no quanto o quadrinho pernambucano precisa do retorno e do crescimento de um projeto marcante e singular como a Ragu. Perguntamos, então, a quantas andavam esses processos. Lin, com a serenidade que demonstrou a todo o tempo, sorriu levemente e, apontando para a própria têmpora com o indicador, soltou: “ainda aqui”.  

Com a chegada desta nova edição, a Ragu há de reocupar o lugar de destaque que lhe é de direito no quadrinho nacional.

Este texto foi publicado originalmente na edição impressa da revista Plaf. Acesse a página especial da revista e compre as edições anteriores.

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