mulher
Ilustração: Stefan Leijon/Creative Commons.

Conto: A mulher na sacada

"Em um dos seus dias de acesso de fúria, mamãe descobriu as doações à Empena nos fundos do Mercado. Chamou os seguranças, tiraram ele lá de trás na tapa"

“Todo santo dia essa romaria na minha porta, mas um dia isso vai acabar…”, foi o que vaticinou meu pai na primeira vez que vi, ainda muito menina, aos cinco eu acho, a romaria de maltrapilhos que iam todos os dias ao pátio da igreja, pontualmente às 18h, receber o sopão, sempre no início da noite. Eles ficavam em fila indiana, bem na porta da nossa venda. Eram jovens, velhos, mulheres, aleijados e mais um sem número de pessoas que iam, a passos lentos, receber uma concha e saciar a fome. Seu Romero, como meu pai era conhecido, não chegou a ver o fim daquela orgia. Morreu ressentido. Tinha ódio da caridade. Dizia que quem depende da caridade é quem não quer trabalhar. São preguiçosos. Minha mãe, que herdou a administração da venda, seguia na mesma conduta. Maldizia a corrida dos seus clientes sempre que o toque do ângelus se aproximava, eles saíam apressados do mercado, segurando suas sacolas com força, com medo de serem sequer abordados ou de terem suas compras arrancadas. Nunca ocorreu nem uma, nem outra situação.

Em poucos anos o térreo de nossa casa mudou de venda para mercadinho. Mamãe tinha mais tino comercial que papai, só não sabia tratar as pessoas muito bem. Pudera, sempre foi colocada em segundo plano na criação e no casamento. A escola acabava no meio da tarde, sempre às 16h, em trinta minutos eu cruzava as esquinas para chegar em casa, e às 18h começava a romaria na calçada do Mercadinho Sempre Bom. Eu ia para a sacada, assistir de camarote aquela entrega. Escutava os protestos da minha mãe, que não sentia vergonha em desejar o fim daquele rito.

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As vendedoras e atendentes que trabalhavam no Mercadinho faziam doações ocultas. Sempre fugindo dos nossos olhos. Mas eu estava na sacada, conseguia ter uma visão privilegiada de tudo, oculta, mas nunca denunciei o que via, só uma vez. Um deles se tornou mais querido. Chamavam-no de Empena, em uma clara expressão de preconceito à sua condição. Sobre duas muletas ele arrastava suas pernas negras e calejadas na rua. Quando saia do sopão, espreitava o melhor sinal e ia aos fundos do Mercadinho receber comida e, vez em quando, brindes. Eu tinha pena, mas também tinha ódio.

Em um dos seus dias de acesso de fúria, mamãe descobriu as doações à Empena nos fundos do Mercado. Chamou os seguranças, tiraram ele lá de trás na tapa. Não tinha a menor necessidade. Ele já estava de saída. Seus restos de comida caíram pelo chão, sendo pisados e emoldurados pelos seus pedidos de desculpas e súplicas para que, pelo menos, deixassem ele comer o que recebera. Ele foi jogado na esquina, sangrando, meio choroso, ainda mais ciente de si e do lugar que ocupava. Eu assistia tudo da sacada. Estava comendo meu fandangos de cebola com toddynho.

Empena se reorganizou, a muleta esquerda estava quebrada, mas ainda conseguia se manter de pé em uma só. Eu ofereci salgadinho de longe, ele acenou com a cabeça que aceitava e veio se arrastando para perto. Joguei o salgadinho lá da sacada no chão e disse: “Apanha aí”. Continuei bebendo meu toddynho enquanto ele se jogou no chão para apanhar o que restou. Aprendi desde muito cedo que certas coisas não podem existir. Questão de criação, sabe. 

Ilustração: Stefan Leijon.

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