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Ilustração: Biu da Silva.

Conto: Doces Pássaros da Juventude

Tramas, vinganças, paixões e o sabor de uma desforra

Tudo começou com uma vingança. Hugo amava Sérgio, mas, antes, Sérgio tinha sido amado por Daniel. Sérgio e Daniel ficaram alguns meses juntos, mas se desentenderam. Pouco tempo depois, no entanto, se reconciliaram e resolveram continuar bons amigos. Daniel ficou solto no mundo. Sérgio foi fazer teatro e conheceu Hugo nos ensaios de uma peça inspirada no surrealismo, escrita e dirigida por um psicanalista com veleidade a se tornar um grande encenador. Começaram a namorar. Daniel, mesmo sem ter mais nada com Sérgio, sentiu ciúmes. Ele conhecia Hugo de vista. Encontravam-se ocasionalmente, pois tinham amigos comuns no Centro de Artes da universidade. Uma das vezes em que conversou um pouco com ele foi quando acompanhou Margarida, Fred, Jane e Alex para fumar maconha em cima da caixa-d’água do prédio onde Hugo morava. Morador do último andar de um edifício de apenas três andares, Hugo descobriu uma passagem que permitia eles subirem até o telhado. Era um caminho tortuoso entre fios e antenas de TV, mas, superado o labirinto, chegava-se a um local amplo onde se podia deitar e curtir a viagem da erva ao som de Pink Floyd, olhando as estrelas.

O namoro de Sérgio e Hugo durou enquanto durou a temporada do espetáculo no teatrinho da universidade. A ruptura foi um pouco dramática, pois Hugo não se conformou com a separação. Apaixonado, mas com raiva, ele procurou Alice, uma amiga de Sérgio, para pedir conselhos de como conquistá-lo de volta. Alice gostava de tramas e teve como brilhante ideia sugerir a Hugo que ele namorasse Daniel. Segundo ela, isto certamente deixaria Sérgio abalado, pois os dois viviam encangados num grupo de teatro de rua e iam sempre juntos para os bares e festas. Para Alice, se Hugo conseguisse seduzir Daniel, Sérgio até poderia voltar para ele. “Você vai ver, Sérgio quer sempre ser o mais desejado. Ao ser preterido, isso o levará a reatar com você para mostrar que ele é a melhor conquista. Se não, você ao menos terá sua vingança”. Hugo saiu da casa de Alice convencido da eficiência do plano. Como nunca tinha prestado muita atenção em Daniel, passou então a despender boa parte de suas horas bolando a melhor forma de conquistá-lo sem despertar suspeitas. Começou a sondar os amigos sobre traços da sua personalidade, seus gostos, suas carências e logo descobriu que Daniel era uma presa fácil.  Bastava saber jogar a isca na hora certa.

Daniel estranhou quando recebeu um recado enviado por Hugo para ir a sua festa de aniversário. Não eram íntimos a esse ponto, mas como todos os amigos em comum tinham sido também convidados, achou natural.  Ele tinha arranjado um estágio em uma escola, no turno da noite, e quando chegou na casa de Hugo, por volta da meia-noite, a festa estava bastante animada. Havia muito mais gente do que ele imaginara. Ao entrar na sala do apartamento, todos cantavam e dançavam “Pro Dia Nascer Feliz”, do Barão Vermelho. Antes mesmo de falar com seus amigos, Daniel foi surpreendido com Hugo na sua frente dando-lhe as boas vindas. “Pensei que você não vinha. Você quer beber o quê? Tem vodka e batida. Venha eu vou lhe servir”. Daniel acompanhou Hugo, pegou uma dose de vodka e voltou para a sala. Encontrou Jane, Alex e percebeu que Sérgio não estava com eles. Percebeu também que Hugo o olhava vez por outra de soslaio e quando ele notava, Hugo ria e tirava a vista. Algum tempo depois quando fumavam um baseado, Hugo se aproximou do grupo e ficou ao lado de Daniel. Alex assumiu o comando da música e colocou o disco de Marina Lima para tocar. O som de “Fullgás” invadiu o ambiente. Neste momento, Hugo olhou para Daniel, se aproximou e disse-lhe com a boca colada em seu ouvido: “fiz essa festa pra você”. Daniel olhou para o lado e viu Alice com um riso estranho nos lábios. Aproveitou para perguntar sobre o amigo. “Você tem notícias de Sérgio? Ele não vem?”. Por conta da música alta, Alice falou algo, mas ele não entendeu e se afastou. 

Lá pelas três da madrugada boa parte dos convidados já tinha ido embora. Os que ficaram fumavam maconha e bebiam o que restara da batida de limão. Havia casais se formando e Daniel e Hugo ficaram conversando longamente pela primeira vez. Ficaram bem juntinhos, mas apesar de Hugo insistir para ele permanecer um pouco, Daniel resolveu ir embora com os demais. Dois dias depois, Hugo apareceu na casa de Daniel com Jane. Foram convidá-lo para ir, no sábado seguinte, assistir a uma performance que aconteceria no Abraxas, um bar cabeça de Olinda. Combinou que se encontrariam lá. Daniel estava planejando montar uma performance com Sérgio, uma colagem de textos a partir de peças de Tennessee Williams e Nelson Rodrigues, uma mistura de Beijo no Asfalto com Doce Pássaro da Juventude, e aquela era uma oportunidade para eles conversarem com o dono do bar. Ele então convidou o amigo para ir com ele, mesmo sabendo que Sergio e Hugo estavam sem se falar desde a festa de aniversário. Mas como sempre tinham conhecidos por lá, isso não seria um problema. Ele não ficaria sozinho. O bar ainda estava meio vazio quando Daniel e Sérgio chegaram. Conversaram com o proprietário e marcaram a apresentação para dali a duas semanas. Jane e Hugo não demoraram a aparecer. Margarida e Alex também foram ao bar. Formaram um grupo animado, onde apenas Sérgio estava visivelmente aborrecido. Passados uns quinze minutos ele cochichou para Daniel se ele não queria ir para outro lugar. Uns amigos o tinham chamado para ir tomar chá de cogumelos. Hugo percebeu o movimento. Daniel topou a proposta na hora. Se despediram rapidamente e partiram. Hugo não se conformou. Seu plano para aquela noite tinha ido por água abaixo. 

No meio da semana, Daniel foi ao Centro de Artes para convidar Gerson, um amigo, a participar da sua performance na concepção dos elementos audiovisuais. Hugo soube e correu desembestado pelos corredores e salas a procura de Daniel. Acabou o encontrando quase na porta de saída e o abordou. “Oi Daniel, que bom te encontrar. Estou precisando concluir um trabalho sobre Artaud e me disseram que você poderia me socorrer”. Daniel estava começando a ficar curioso pela insistência de Hugo em se aproximar dele. Também começara a prestar mais atenção no seu rosto meigo, nos olhos verdes caramelo e a sentir desejo em ficar mais perto do seu corpo. Garantiu então que, na noite seguinte, quando saísse do estágio, estaria disponível para ajudá-lo. Como prometera, por volta das onze da noite, Daniel chegou ao apartamento de Hugo. Fred, que dividia a moradia com Hugo, tinha voltado de viagem e também estava lá. Conversaram um pouco, Fred foi dormir e Daniel seguiu para o quarto de Hugo onde trabalharam até umas duas da manhã. Concluído o trabalho, Daniel pegou um livro com peças de Garcia Lorca que estava aberto sobre a mesa.  Tomou o livro em suas mãos e começou a ler, em voz alta, trechos de Bodas de Sangue. Hugo o acompanhou. Quando cansaram, Hugo preparou um chá de hortelã que beberam sem pressa enquanto fumavam um baseado. Hugo sugeriu a Daniel dormir lá em vez de voltar para casa, pois além de ser quase madrugada, estava chovendo. Hugo forrou uma colcha macia no chão e deitaram-se lado a lado. Em poucos instantes estavam nos braços um do outro. E assim ficaram até o dia amanhecer. Perderam a conta de quantas vezes gozaram. 

Nas duas semanas seguintes, nos dias em que não estava ensaiando a performance com Sérgio e Gerson, Daniel ia para a casa de Hugo. A atração entre ambos evoluiu de uma forma tão fulminante que nem eles conseguiam explicar como aquilo estava acontecendo. A cada encontro, a descoberta do prazer que um proporcionava ao outro foi se multiplicando. Descobriram afinidades esotéricas, o gosto por suco de carambolas e Coca-Cola, autores amados, o orgasmo em tempos iguais e, sobretudo, o gosto por farsas e tramas rocambolescas. Um dia, depois de beberem chá de trombetas, resolveram fazer um pacto de sangue. Hugo pegou a faca amolada, virou a mão e encostou em seu dedo indicador. Pediu que Daniel fizesse o mesmo. Na hora h, porém, acharam que ia doer, substituíram a faca por um lápis de tinta hidrocor vermelha, riscaram os dedos, colocaram juntos e juraram se amarem para sempre. Hugo confessou a Daniel o plano de vingança armado por Alice. Riram então das estratégias de sedução perpetradas por Hugo, da cisma de Daniel com o interesse repentino de Hugo por ele, mas o maior deleite para ambos era especular qual seria a reação de Sérgio quando soubesse que eles estavam namorando. Deram então um jeito de cruzar com Jane abraçadinhos e trocando carícias. Ela era um bucho de piaba. Em pouco dias, a notícia de que Hugo e Daniel estavam apaixonados se espalhou. 

No dia da performance no Abraxas, todos os amigos mais próximos estavam lá. Sérgio estava bastante nervoso com a apresentação. Antes de entrar em cena, bebeu uma lapada de cachaça e de supetão, virou-se para Daniel, que estava concluindo a pintura de seu rosto. “Eu ouvi dizer que você e Hugo estão juntos. Isso é verdade?”, disse com um tom ríspido e irritado na voz.  Daniel fingiu que não ouviu e pediu para Gerson acionar o projetor. Sérgio não teve outro jeito a não ser dar início a performance. Ao final, foram ovacionados com os aplausos e gritos entusiasmados dos presentes. Encerrada a apresentação, quando ainda estavam nos bastidores do pequeno palco do bar, Hugo foi parabenizar Daniel e lhe deu um abraço forte e demorado, ignorando Sérgio que estava justo ao seu lado. Sérgio fulminou ambos com os olhos, colocou mais uma dose de cachaça no copo e bebeu de um gole só. Outras pessoas chegaram e, em seguida, foram todos beber e dançar. Daniel e Hugo, porém, se afastaram e ficaram sentados numa pequena escada lateral no terraço do bar. Sérgio passou a caminhar pelo bar a procura de Daniel até que o viu na escada. Aproximou-se. Daniel lembrou o dia em que chegou em casa e pegou Sérgio transando com outro cara em sua cama. Hugo lembrou quando Sergio, depois do último dia do espetáculo em que atuavam, disse que não estava mais a fim dele. Hugo puxou Daniel para mais perto e o beijou longamente. Sérgio ficou parado diante deles. Hugo e Daniel deram um risinho cínico e retomaram os beijos. Sérgio nada disse, sua perturbação emocional era visível. Só restou a ele afastar-se e ir embora. Hugo e Daniel saborearam a desforra com mais um longo beijo. O plano de vingança fora um sucesso.