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Ilustração: Biu da Silva.

Conto: Michê

No centro de São Paulo, uma história de homofobia e violência policial. "Não conseguia ficar calado. “Não se pode prender alguém sem acusação. Não fizemos nada pra sermos presos”".

Eu não posso dizer que sou oficialmente um garoto de programa. Não ganho a vida saindo com outros homens por dinheiro. Trabalho numa editora de livros, tenho um salário que não é grande coisa, mas dá pro gasto. Dou umas saídas com uns caras por curtição. Acho divertido fazer coisas diferentes, conhecer pessoas. Às vezes rende uma grana, não nego. Os caras querem me pagar e eu aceito. Aí eu uso o dinheiro pra beber, comprar maconha, pegar uns doces e ir pra balada. A primeira vez que dei uma de michê foi no Rio de Janeiro. Faz uns quatro anos. Eu gosto dessa palavra: michê. Eu estava hospedado na casa de um tio em Teresópolis e desci pro Rio pra bater perna. Encontrei uns conhecidos, bebemos umas cervejas no Amarelinho e, depois que eles foram embora, vi que tinha perdido o último ônibus. Estava sem cartão e apenas com o dinheiro da passagem, se fosse dormir num hotel não teria como voltar pela manhã. Caminhava pela avenida Rio Branco já meio deserta, pensando numa solução quando um homem com cerca de 40 anos passou a caminhar ao meu lado e me cumprimentou. Não era bonito nem atraente. Era um tipo comum. Conversamos um pouco e ele me convidou para tomar uma cerveja. Depois me perguntou se queria ir com ele a um motel. Eu disse que iria se fosse para passar a noite. Ele topou, transamos e dormimos juntos num motel na Glória. No dia seguinte, ele pagou meu café da manhã, me deu uns trocados e nos despedimos sem trocar telefones ou endereços.

Depois da história no Rio, ao voltar para São Paulo, não descartei repetir o que tinha feito. Até então não achava que tivesse pinta pra ser michê.  Eu via os boys na Avenida Paulista, no Parque Trianon fazendo ponto, sabia que alguns deles também iam para as saunas gays, mas olhava para mim e não via atrativos o suficiente para alguém querer pagar para transar comigo. A maior parte dos garotos de programa são malhados, usam camisetas justas para marcar o tórax e os braços fortes e calças apertadas para mostrar as coxas grossas. Outros nem são lá essas coisas, mas são bem-dotados. Tem ainda os bonitinhos, com traços delicados, carinhas de anjo e bundas salientes bem-feitas. Eu não me enquadro em nenhuma dessas categorias. Não sou um cara feio, mas não sou nenhum Cauã Raymond. Sou alto, magro, uso sempre o cabelo cortado com máquina 3 e meu vestuário usual é calça jeans bem desbotada, camiseta branca e tênis All Star. Acho que isso deve despertar a fantasia de alguns caras mais velhos, sobretudo os que têm medo de serem roubados ou assassinados pelos michês bandidos. Eu, por certo, inspiro alguma confiança, não tenho cara de perigo.  Os caras com quem tenho saído em geral são homens tímidos, com boa situação financeira, e dão a entender que não querem estar ao lado de alguém facilmente identificável como garoto de programa. São médicos, arquitetos, donos de restaurante, alguns casados e com filhos.

Nas noites de sexta-feira, quando não tenho nada para fazer e não está frio, eu fico em frente ao Conjunto Nacional porque acho seguro. O primeiro cara que peguei em São Paulo foi lá. Moro na Liberdade e estava esperando o ônibus do Largo da Pólvora. Um carro branco parou um pouco a frente de onde eu estava e um senhor de pele pálida, com camisa social azul escuro, cabelo grisalho bem penteado, começou a fazer sinal com a mão. Notei, mas fiquei na minha. Ele passou a buzinar e percebi que, ao meu lado, um pouco atrás de mim, tinha um garoto loiro, alto e bem bonito. O rapaz foi lá, debruçou-se na porta do carro, mas não demorou muito e voltou caminhando em minha direção. “É pra tu, boy”. Eu fiquei meio sem jeito. Tive receio que o michê achasse que eu estava roubando os clientes dele. “Vai lá, o cara tá te chamando”. Resolvi ir. O senhor, de uma forma polida, perguntou para onde eu ia e se queria uma carona. Aceitei. 

Continuei com esse hábito noturno ocasional até que, seis meses atrás, entrei numa enrascada que eu quero contar para vocês. Por volta da meia noite de mais uma sexta-feira, eu estava caminhando em direção ao Conjunto Nacional e encontrei um amigo na rua lateral ao Parque Trianon. Valmir é um rapaz vistoso, mas meio ingênuo. É também pernambucano como eu, de Limoeiro. Veio para São Paulo tentar viver como ator de teatro. Não é muito talentoso, mas na época ele participava de uns esquetes cômicos numa boate gay da Marquês de Itu. Tinha caído nas graças da travesti dona da casa e estava ganhando uns trocados por lá. Ele gostava de fazer pegação na praça ao lado do Trianon que no verão fervia. Vez por outra ele me convidava para ir com ele, mas nunca gostei desse negócio de ficar me agarrando com estranhos dentro de uma moita. Paramos então um pouco e falamos umas bobagens tirando onda com um conhecido que estava numa montagem fazendo o papel de um coelho gay. Quando estávamos começando a voltar a caminhar, do nada, uma viatura da Polícia Militar surgiu e parou ao nosso lado. Dois policiais desceram com armas em punho. “Levanta os braços, seus putos!”. Antes que disséssemos qualquer coisa, mandaram a gente virar as costas e nos empurraram com truculência no gradil de ferro que margeia o Trianon. Nos revistaram e um deles começou a fazer perguntas: “Tão fazendo o que aqui?”. Valmir estava da cor de uma folha de papel A4. “Conversando”, respondi. “Eu sei qual é a conversa de vocês, seus vagabundos. Estão caçando macho”, continuou o soldado. Sua voz era gutural e emitia um grunhido estranho como se fosse um cão rosnando. “Virem pra cá, seus veados!”. Lentamente nos voltamos e só então pude ver os rostos dos policiais. O que gritava era um homem moreno, braços roliços e peludos, num dos dedos da mão direita tinha um anel com uma caveira, portava um grande bigode e tinha os traços de alguém com pelo menos uns 45 anos. O outro era mais jovem, um tipo banal com um riso meio estúpido estampado na face. “Vamos! Os dois! Entrem na viatura”, ordenou a voz de cachorro. Quando o PM disse isso o meu coração gelou. Na hora, todos os relatos e notícias de gente que a polícia pega, mata e joga o corpo em área de desova me vieram à mente. Valmir se desesperou e fez um movimento como se fosse correr. “Quer morrer é seu fresco”, disse o policial apontando a arma na nossa direção com o dedo no gatilho. Eu tentei manter a calma. “Ninguém vai fugir não, soldado”. “Então entrem logo na viatura, seus porras”. O outro policial abriu a porta do veículo e nós entramos. 

O espaço na parte de trás da viatura era apertado e sufocante, era um carro comercial de passeio adaptado para rondas. Uma grade nos separava dos policiais. Não conseguíamos vê-los bem. “Vamos levar essas bichas pra onde?”, perguntou o condutor. Com um risinho cínico, o outro respondeu pausadamente: “a gente vai dar uma volta, pra elas aprenderem a ser homem”. Eu ousei perguntar por que estávamos sendo presos. O policial, visivelmente irritado, respondeu com ironia: “Você logo vai saber”. Virou-se para o colega e completou com sarcasmo: “esse deve gostar de levar rola, tem um cassetete bem grosso aqui pra enfiar no cu dele”.  Eles deram partida e começaram a rodar pelo entorno do Trianon. A situação começou a me deixar cada vez mais nervoso e, ao mesmo tempo, estranhamente destemido. Não conseguia ficar calado. “Não se pode prender alguém sem acusação. Não fizemos nada pra sermos presos”. Valmir olhou pra mim aflito e com a voz embargada pediu pelo amor de Deus para eu não dizer mais nada. Mas eu prossegui. “Em vez de prender bandido vocês ficam prendendo trabalhador”. “E rodar a bolsinha é trabalho? Seu merda!”, respondeu o policial aos gritos. Ele estava visivelmente enfurecido. “Eu tenho emprego”, completei tolamente. “Seu patrão vai gostar de saber que o funcionário dele sai de noite pra dar o cu”. “Isso é homofobia. Eu vou denunciar vocês”, respondi, num tom desafiador. No mesmo instante, porém, mal eu terminara a frase, um chamado soou no rádio do carro. “Câmbio! Atenção! Viaturas que estão na região da Paulista sigam para a Amaral Gurgel. É uma ocorrência urgente!”. Sem hesitar, o policial respondeu que estava a caminho. “Toca pra lá!”, disse, acionando as sirenes. Estávamos na Alameda Santos, o policial no volante acelerou o carro e partiu rumo a Amaral Gurgel. Ele passou de 40 pra 120 KM por hora em questão de segundos. A viatura subiu pela Alameda Casa Branca e cruzou a Avenida Paulista com tanta velocidade que, ao sair da Casa Branca, ficou totalmente no ar por uns instantes. Quando os pneus tocaram o solo outra vez ele arrancou com mais velocidade ainda. Deu a volta por trás do MASP, voltou para a Paulista e depois pegou a Frei Caneca. 

O rádio do carro continuava transmitindo as conversas entre as viaturas. O som tinha interferências, mas deu para entender que havia ocorrido um assalto e que um tiroteio estava acontecendo entre a PM e os assaltantes encurralados. Eu não conseguia organizar minhas ideias. Continuava apavorado com a possibilidade dos policiais nos seviciarem e agora temia ser jogado num meio de um tiroteio e ser fuzilado com uma bala perdida. Enquanto pensava sobre como seria o desfecho daquele rolo, vi que estávamos na Frei Caneca em uma velocidade absurda para uma rua estreita e que, mesmo àquela hora, tinha um certo movimento de veículos e pessoas. Continuávamos rodando a pelo menos 100 KM por hora. Para nos mantermos equilibrados tínhamos que nos segurarmos na grade que nos separava dos policiais. Nesse momento lembrei então da curva fechada em L no trecho final da Frei Caneca quando ela se torna a Caio Prado. O carro continuava correndo como estivesse numa corrida, voando feito um foguete. “Meu Deus! ele não vai conseguir fazer a curva!” Quase não conclui o meu raciocínio. O policial tentou frear, os pneus cantaram, mas era tarde demais. Senti apenas meu rosto ir de encontro a grade e ouvi o barulho do carro se chocando violentamente com as barras de ferro colocadas estrategicamente na calçada para evitar que carros em alta velocidade, como o que estávamos, atingissem a entrada do edifício ali localizado, ao perderem a direção. “Porra!”, gritou o policial moreno. “Não viu a curva não? Caralho!”. O rádio do carro continuava transmitindo as conversas sobre o tiroteio na Amaral Gurgel e o meu nariz sangrava, encharcando a minha camiseta branca. 

Em poucos instantes, uma outra viatura policial que também descia a Frei Caneca estacionou ao lado do carro batido. Os policiais ordenaram que eu e Valmir saíssemos da viatura. O policial que gritava todo tempo conosco se aproximou e disse em tom ríspido, mas conciliador: “Calem a boca. Não respondam nada”. Olhei para Valmir e percebi como ele estava atordoado. Levantei a cabeça por um tempo e meu nariz parou de sangrar. O policial da outra viatura se aproximou e viu o estrago no carro acidentado com a frente toda destruída e um pneu estourado. Ele estava com a prancheta na mão e fazia anotações, quando olhou para mim e Valmir e perguntou o que estávamos fazendo ali. Notei que ele era um oficial. Quando ia responder, o policial que nos ameaçara adiantou-se: “Estavam vagabundando, deixa eles pra lá”. O oficial nos olhou mais uma vez. Viu o sangue e perguntou se eu precisava de socorro médico. Fiz não apenas com um movimento da cabeça. Ele fez um gesto com a mão para nos afastarmos. Saímos o mais rápido que pudemos, mas ainda deu tempo de ouvir o oficial gritar com os policiais da viatura acidentada. “Seus merdas! Essa é a segunda viatura que vocês fodem em menos de um mês!”. Olhei para trás e vi o oficial gesticulando e o policial bigodudo de braços peludos de cabeça baixa, olhando para o chão.  Quando estava já bem distante comecei a tremer. “Filhos da puta!” foi só o que consegui dizer. Ao mesmo tempo me dei conta que o acidente podia ter nos matado, mas acabou nos salvando de uma bronca feia. 

Depois desse episódio nunca mais tive notícias de Valmir. Soube que ele voltou pra Pernambuco. Eu continuo por aqui. Pensei em fazer uma denúncia contra os policiais por homofobia, mas não tinha nenhum dado para me basear. O pavor não me deixou memorizar a placa da viatura, nomes, nada. Agora, passo todos os dias em frente do Conjunto Nacional, no ônibus para o Largo da Pólvora, quando volto das aulas na faculdade. Outro dia, da janela do ônibus, vi o rapaz loiro e alto que conheci meses atrás indo em direção a um carro que estava parado próximo a calçada.  Mas ele não estava mais tão bonito. Tinha uma grande cicatriz saindo do nariz até a testa. Eu não fico mais na rua em busca de aventuras, agora marco encontros pelos aplicativos de paquera. De vez em quando rola uma grana. Eu torro na balada. 

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