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Ilustração: Biu da Silva.

Conto: O caderno

Uma história sobre memórias, perdas e amuletos. "Leandro estava conseguindo ser forte, folheava o caderno como um desafio de superação pela partida de Rafael"

Na tarde do dia 2 de junho de 2018, Leandro abriu a gaveta do seu criado-mudo e entrou no passado. Foi guardar uns cartões e se deparou com o velho caderno sem capa embrulhado com um saco plástico. O caderno estava em suas mãos há pelo menos sete anos. Pertencia a Rafael, o rapaz a quem dedicara seu afeto nos últimos anos e que o deixara sem explicações plausíveis há exatamente dois meses. Leandro tocou no papel amarelado, virou a primeira página e lembrou do dia em que Rafael, logo no início da convivência com ele, colocou o caderno em suas mãos e lhe contou o que nele continha. Poemas, frases de pensadores famosos, desenhos, tudo relacionado a uma louca paixão por ele vivida com uma moça, quando era ainda quase um adolescente, e pela qual sofreu diversos infortúnios que acabaram levando ao fim do namoro. No auge do seu sofrimento, Rafael encontrou nas palavras escritas o conforto para a dor que sentira. Leandro lembrou que teve ciúmes da menina, pois sabia que Rafael nunca teria por ele o mesmo sentimento intenso que parecia tê-lo marcado profundamente. Isso o fez achar-se inferior diante daquela desconhecida. Mas, para não perturbar a emoção do amado, calou-se. Perguntou a Rafael porque estava confiando a ele aquele caderno. “Eu era louco por ela e, apesar do que ela me fez, eu não tenho coragem de destruí-lo. Mas eu não quero esse caderno perto de mim, por isso quero que você o guarde”. Leandro aquiesceu, nunca negava os pedidos de Rafael, mesmo os mais estranhos e inesperados. 

Leandro estava conseguindo ser forte, folheava o caderno como um desafio de superação pela partida de Rafael. Mas a fortaleza desabou quando, ao virar uma das páginas, reviu um pequeno calendário.

Quando Rafael se despediu – na época eles ainda não moravam juntos – bastou a porta ser fechada para Leandro pegar o caderno e devorar as suas páginas com uma sofreguidão quase histérica. Cada linha, cada verso, era para ele uma espécie de pedra da roseta cheia de hieróglifos a serem decifrados. Por meio dos textos redigidos em letras grandes de imprensa, ele tentou calcular a dimensão que aquela mulher, que ele descobriu chamar-se Sharlenne, tinha alcançado na vida de Rafael. Pelo que leu, viu que ele ainda gostava dela e a ela se entregaria outra vez se a dita cuja o chamasse. Leandro sofreu por dias seguidos imaginando seu menino nos braços de uma mulher a quem passou a devotar uma antipatia gratuita. Olhava-se no espelho e ao se confrontar com seus cabelos grisalhos, as rugas começando a marcar seu rosto, entrava num estado de penúria interior e invejava a mulher que ele nem conhecia o rosto, mas em cujas carnes tenra e jovem Rafael se deliciara. Com o passar do tempo, porém, o rapaz não voltou a falar de Sharlenne nem do caderno e Leandro foi, aos poucos, se acalmando. Deixou de ler os textos, mas começou a usá-lo como repositório de coisas ligadas ao seu rapaz. Uma foto impressa, um bilhete, um papel rabiscado, uma folha seca colhida em um passeio feito juntos eram colocados entre as páginas do caderno. Leandro atribuiu ao caderno o dom mágico de manter Rafael ao seu lado, pois os amuletos, segundo sua intuição, tinham o poder de afastar Sharlenne do pensamento de Rafael. Era sua simpatia pessoal para não perder sua alma-gêmea.

A passagem dos anos, acrescido da rotina e de outras preocupações, pouco a pouco, levaram o caderno ao esquecimento. Ele sabia da sua existência, mas como acontece com os livros prediletos, sabe-se que eles estão na estante, mas nunca são abertos. Retomar aquele caderno nas mãos, naquele momento, para Leandro era reviver os anos em que Rafael fora para ele um elixir de juventude e bonança. Tão diferente do presente, de dias tristes e sombrios, sem ter mais o grande amor de sua vida ao seu lado. Leandro estava fazendo força para não chorar, queria provar a si mesmo que não sucumbiria a dor, que não sentiria saudade do corpo de Rafael gemendo de prazer ao seu lado, das mãos macias do rapaz massageando suas costas, do cheiro doce de suas axilas… 

Leandro estava conseguindo ser forte, folheava o caderno como um desafio de superação pela partida de Rafael. Mas a fortaleza desabou quando, ao virar uma das páginas, reviu um pequeno calendário, desses que lojas de fotografia oferecem como brinde aos seus clientes no final do ano, com a foto desbotada de Rafael ao lado dos meses e dias do ano e a frase “esse ano + perto de você”. Leandro foi a nocaute. O caderno abriu uma fenda enorme em seu peito. As lágrimas escorriam em profusão e nada conseguia detê-las. Leandro arremessou então, com toda sua força, o caderno contra a parede e deu um grito. “Porra Rafael!”. Ao cair no chão, o caderno espalhou diversas coisas nele contidas. Leandro viu então uma mecha do cabelo de Rafael presa com uma fita vermelha. Ainda transtornado apanhou a mecha, não lembrava dela. Aos poucos, porém, foi reavivando em sua memória o dia em que ele pedira a Rafael um pouco do seu cabelo para levar com ele nos dias em que ficou internado para uma cirurgia. Era uma maneira de ter um pedaço dele ao seu lado lhe dando proteção. 

Ainda com os fios de cabelo do seu amado nas mãos, Leandro parou de chorar e cerrou os olhos. Em meio a penumbra, Leandro pegou as cartas do seu tarô. Acendeu um pequeno abajur, forrou uma mesa com uma pequena toalha em vermelho vinho e colocou as cartas sobre ela. Embaralhou-as lentamente e, em seguida, retirou três por acaso. Em voz alta perguntou: “Rafael voltará para meus braços?” Virou as cartas. A roda da fortuna, o louco e o eremita. Olhou para as cartas por instantes. Embaralhou outra vez e perguntou: “Rafael ainda me ama?”. Escolheu mais três cartas e as colocou lado a lado. Virou uma por uma. O sol, o sumo sacerdote e a morte. Olhou mais uma vez para as cartas, revirou-as lentamente e as embaralhou junto com as outras e perguntou: “O que devo fazer para ter Rafael de volta?”. Pegou três novas cartas. A estrela, a força e a papisa. Olhou para o lado e perto do abajur viu a mecha de cabelo de Rafael presa na fita vermelha. 

Leandro abriu os olhos e sentiu um sobressalto. Não identificou de imediato onde estava. Só recuperou plenamente a noção de espaço e tempo quando avistou o caderno largado no chão e sentiu a mecha de cabelos em suas mãos. Levantou-se ainda atordoado e correu para o seu computador. Em meia hora já tinha lido dezenas de simpatias para trazer amor de volta usando os cabelos da pessoa amada. Tinha em mãos o mais difícil de conseguir: os fios de cabelo. Leu que fios antigos poderiam perder a energia, mas eram os únicos que ele tinha, foram de um tempo em que ele e Rafael eram felizes, e a felicidade, não tinha dúvidas, ainda estava ali registrada em cada átomo daqueles fios de cabelos castanhos. Continuou sua pesquisa e logo descobriu que não era fácil decidir qual feitiço fazer para trazer seu menino de volta.  Entre colocar os fios de cabelo em figo em calda, queimá-los numa fogueira, colocá-los numa caixa de fósforo e largá-la num riacho de água corrente, optou pelo que lhe pareceu mais exequível naquele momento: a simpatia do perfume.  Pegou então uma tesoura e cortou uns fios do seu cabelo. Soltou a fita vermelha da mecha de cabelos de Rafael e juntou aos seus.  Colocou dentro do frasco de sua colônia predileta que estava apenas com um restinho de perfume e, em voz alta, repetiu o que o site Feitiços Poderosos ordenava: “Como seus fios de cabelo junto aos meus, entrelaçados e com o meu aroma, viveremos um maravilhoso relacionamento”. Tampou o frasco e o colocou no fundo da gaveta da cômoda amarela onde Rafael guardava parte de suas roupas e agora estava vazia. Ficou olhando para o frasco de perfume e, de repente, sentiu-se estranho. Começou a andar pelo apartamento como uma barata tonta. Pegou o caderno que ainda estava largado no chão, juntou as lembranças espalhadas, colocou-as dentro dele e o pôs na gaveta ao lado do frasco de perfume. Fechou a gaveta, mas em vez de ficar animado com a possibilidade de Rafael voltar por causa da simpatia, se achou tolo e ridículo. Viu-se como uma garotinha romântica que coloca o nome do namorado no ursinho de pelúcia e que posta, no Facebook, frases melosas com um coraçãozinho do lado. Pensou em pegar o vidro do perfume e jogá-lo fora, mas estava tão exausto. Foi dormir. 

No dia seguinte, Leandro acordou com dor de cabeça e enjoado. Fez um chá de boldo, foi para a varanda do seu apartamento e ficou olhando para o céu vendo as nuvens passar. A cada gole de chá, fazia uma retrospectiva do que tinha vivido no dia anterior por causa do caderno de Rafael.  Sharlenne teria reaparecido na vida de seu ex-amado? Lembrou do frasco de perfume na gaveta. Outra vez indagou se não deveria desfazer-se daquele feitiço que agora lhe parecia tão inútil. Todavia, ficou prostrado na espreguiçadeira entregue a devaneios aleatórios. Para que mexer com fantasmas?  A solidão também tinha seus encantos. O silêncio, a mansidão dos dias, as leituras sem interrupções… a divagação o levou, sem que percebesse, ao sonho da tarde anterior com o jogo de tarô. Conseguia recordar as perguntas feitas e, com nitidez, todas as três trincas de cartas apontando quase para a mesma direção: transformação, recolhimento, sabedoria… A dor foi virando melancolia. Murmurou baixinho o trecho de uma canção que ouvira dias atrás… E deixa o tempo passar/ deixa a onda bater/ um drinque vai te salvar/ eu vou sair pra beber… E a melancolia foi virando indiferença.

Na tarde do dia 2 de junho de 2019, em meio a uma faxina geral em sua casa, Leandro deparou-se com o frasco de perfume e o caderno na gaveta da cômoda do quarto de hóspedes. O restinho da colônia ainda estava lá com os fios de cabelo embebidos nela. A única coisa que mudara fora a cor do líquido, antes amarelo bem clarinho, transformado em amarelo ocre. Leandro pegou o frasco, abriu e encostou o nariz para sentir o cheiro. Era o mesmo cheiro doce das axilas de Rafael. Fechou o frasco e o colocou no saco de lixo onde estava pondo todas as bugigangas e tranqueiras as quais queria se desfazer. Não mexeu no caderno. Alberto apareceu na porta do quarto e não entendeu porque Leandro ria alto. “Alguma coisa, querido?”, perguntou curioso. “Nada não, doidice minha. Aqui só tem troço velho, nada que se aproveite. Só serve mesmo pra jogar no lixo”.  

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