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Ilustração Alexandre Figueirôa sob imagem da série Addiction. (Montagem/Reprodução).

Conto: Um chinês

"Olhei para ele em silêncio, mas um silêncio de cobiça e luxúria. Zhao parecia convencido que me conquistara apenas pela minha inesperada pausa."

O texto a seguir faz parte da seção de contos e poesia da Revista O Grito!. Acompanhe mais trabalhos inéditos por aqui.

Atenção: o texto ficcional a seguir contém conteúdo impróprio para menores de 18 anos. Leia com discrição.

Por Biu da Silva

Conheci Zhao Qiang em uma pequena loja de souvenirs nos arredores do Les Halles, em Paris, em meados de janeiro. Foi um encontro comedido, diria até um pouco tenso. Eu não estava bem. O dia frio, chuvoso e a perspectiva do retorno para o Brasil me aborreciam. Tinha me obrigado a sair, mas ficar perambulando sem destino sob o vento gelado, subitamente, me parecera uma ideia estúpida. A decisão de comprar lembrancinhas foi uma maneira de me aquecer um pouco e me sentir menos inútil. Enquanto olhava as quinhentas mil bugigangas espalhadas pelo estabelecimento, passeei meus olhos lentamente de um lado para o outro e no percurso me deparei com Zhao. Olhei para ele em silêncio, mas um silêncio de cobiça e luxúria. Zhao parecia convencido que me conquistara apenas pela minha inesperada pausa enquanto meu pescoço girava de um lado para o outro. Ele não errara. Um pequeno riso nervoso desenhou-se no meu rosto. O vendedor percebeu de soslaio que algo tinha acontecido, mas permaneceu imóvel junto ao caixa. Como se tivesse sido acometido por uma síncope voluptuosa tomei Zhao nas mãos, troquei palavras rápidas com o vendedor, agradeci e parti. Sai da loja com Zhao ao meu lado. Em silêncio profundo. Decidi voltar para o pequeno estúdio na Rue du Temple, onde estava hospedado, há poucas quadras dali. Havia parado de chover. Enquanto caminhava minha cabeça fervilhava. Como Zhao nada dizia, isso me deixava ainda mais nervoso. Lembrei das notícias de que um novo vírus estava se espalhando rapidamente por uma grande cidade chinesa, mas não achei que aquilo fosse um assunto agradável para recordar naquele momento. Pensei em parar num bar e tomar uma taça de vinho, mas meu corpo estava frêmito de desejo. Zhao ao meu lado não tinha nenhuma dúvida sobre as minhas intenções. Ele sabia que fazia parte das minhas fantasias. Perceber essa certeza de sua parte a respeito de minha intimidade só tornava a inquietação que atravessava meu espírito ainda mais desordenada. Comecei a dizer para mim mesmo que deveria largar Zhao ali na rua e seguir sozinho para o estúdio, mas essa vontade rapidamente era substituída pela ideia de ao menos satisfazer aquele desejo incontornável e depois descartá-lo. Isso não é algo incomum para um homem mundano. Lembrei de tantas aventuras vividas ali mesmo pelo Marais nos cruising bar que costumava frequentar quando anos antes passara uma longa temporada em Paris. Dos corpos anônimos com quem compartilhei beijos, sussurros, e o esfregar de coxas, bundas e rolas, gozos rápidos e o au revoir para alguém que nunca mais iria rever. Zhao seria mais um. Isso. Estava decidido. Não seria diferente. Uma transa, uma ejaculação, a carne aliviada e adeus. Quando finalmente decidi permanecer aquela noite com ele percebi também que não havia mais como desistir. Eu já estava com Zhao diante da entrada principal do prédio onde estava localizado meu estúdio. Zhao não falava, não era da sua natureza, assim não me senti na obrigação de fazer esforço para que nos comunicássemos por grunhidos ou o que fosse, fiquei na minha. Olhei para os lados e não havia ninguém caminhando pela calçada estreita.  Digitei o código com as mãos trêmulas e em seguida atravessamos as duas portas que separavam os dois blocos do edifício. Contornamos o pátio aberto e subimos as escadas com incrível ligeireza. Entramos no estúdio como se não quiséssemos ser vistos. Zhao seguia meus movimentos sem nenhuma hesitação. Essa impressão me encorajou, pois me fez pensar que controlava tudo o que estava acontecendo entre nós. Ao fechar a porta, senti um certo alívio. O estúdio era espaçoso, mas não tinha sofá, Zhao imediatamente colocou-se sobre a cama. A inquietação, porém, que tinha diminuído um pouco, voltou mais forte. Corri ao banheiro, fiz xixi e voltei para o salão. Cerrei as cortinas das duas grandes janelas do estúdio para que os vizinhos não vissem o que iria acontecer dali a instantes. Tirei minha roupa, peguei preservativo e gel e olhei para Zhao. Ele permanecia incólume. Sua pele de um amarelo rosado era macia. O pênis intumescido era generoso em tamanho e ao apertá-lo com as duas mãos uma sensação gostosa me invadiu. O ato foi rápido. Não me senti completamente à vontade. Os diversos movimentos que Zhao executou ao me penetrar, ora com suavidade, ora com intensa vibração, ora com estocadas fortes me levou sem muitas delongas ao gozo. Não tinha sido uma trepada dos deuses. Os chineses – sim, Zhao, agora tinha certeza, era chinês – não são grandes amantes. São tímidos e reservados. Além disso, meu nervosismo, meu acanhamento e uma certa vergonha pela intenção de abandoná-lo logo em seguida, também nublaram a relação. Todavia, a tensão, o tempo frio, e o relaxamento após o sexo me fizeram adormecer. Zhao continuou ao meu lado. Horas depois, ao acordar, percebi que Zhao não fora embora. Estava asseado e quieto. Eu não sabia o que dizer. O desejo de mandá-lo para bem longe havia evanescido.  Acolhê-lo pelos cinco dias que me restavam em Paris não seria um grande incômodo. Sua calma, sua passividade e seu silêncio me eram convenientes. Quem sabe a segunda vez seria mais gostoso. Na hora de partir eu veria o que fazer. E assim foi feito. Zhao ficou. Três dias depois, transamos outra vez. Zhao não mudou em nada sua performance, mas eu tirei muito mais prazer da situação. Sem cismas, entregue ao desejo e gostando cada vez mais daquele pênis tão bem desenhado e duro, era o que me bastava. No dia de voltar, enquanto preparava minha bagagem, Zhao insinuou em vir ao Brasil comigo. Na hora, gelei. Zhao não sabia que eu tinha um amante fixo no Brasil. Fiquei fazendo elucubrações de como resolver aquilo. Contudo, me dei conta que talvez ele não se importasse. Seu nome, que significa alguém que tem a força e é capaz de ver por cima, certamente lhe daria a capacidade de não criar confusão com coisas que não valessem a pena. Podia ser que estivesse querendo apenas conhecer um novo lugar, dar um tempo em vez de ir para a China com a ameaça de um novo vírus matando pessoas por lá. Sem conseguir decifrar exatamente o que ele poderia estar sentindo, assenti e passei a ficar preocupado com a possibilidade, aí sim bem concreta, de meu amante não gostar da história de eu voltar de viagem com um chinês na mala. Resolvi, no entanto, não me preocupar com isso, afinal ele também não é flor que se cheire e tem suas aventuras. Zhao enfim embarcou comigo. Chegando ao Brasil, para evitar problemas fiz questão de logo no primeiro dia apresentar Zhao ao meu amante. Nesse mesmo dia fizemos um ménage à trois. Foi bem divertido. Mas entre Zhao e meu amante, preferi ficar apenas com meu amante. Amor antigo sabe como é. Conversamos os três e Zhao aceitou a situação com sua calma peculiar. Não posso negar que conhecer Zhao foi uma experiência curiosa. Ele agora está lá quietinho, sem pilhas, dentro de uma caixa, numa gaveta do guarda-roupa. Quem sabe um dia desses, a gente convida ele de novo para uma brincadeira.

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