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Cena de Ensaio Sobre a Ausência (Divulgação).

Conversa com o cineasta David Aynan: “o que me movimenta é a efervescência do cinema negro que está sendo produzido no Brasil”

O diretor de O Som do Silêncio reflete sobre o cinema negro e a importância de recontar histórias para além do olhar do colonizador

Especial para Revista O Grito!

David Aynan é egresso da graduação em Cinema e Audiovisual, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). No contexto de uma universidade inclusiva, a UFRB conta com 83,4 % de alunos autodeclarados negros. Autor de O Som do Silêncio (2018), ele atua na área de direção, designer de som, roteiro e montagem, além de ministrar oficinas de roteiro, direção e sonorização no cinema.

Nesta entrevista com a professora e pesquisadora Fernanda Martins, no âmbito do Laboratório de Análise e Criação em Imagem e Som, Aynan oferece uma bela introdução ao Cinema Negro no Recôncavo da Bahia. 

Como começou seu interesse pela chamada Sétima Arte?
David Aynan: 
Ainda com 16 anos, no ensino médio em Araxá (MG), cidade onde nasci e passei infância e adolescência, realizei junto com um grupo de amigos um filme, uma versão caseira de Faroeste Caboclo, famosa música do grupo de rock brasileiro Legião Urbana. Ainda temos o material bruto dessas imagens, feitas com uma câmera VHS emprestada. Foi minha primeira experiência como diretor, ainda que não tivesse acesso às técnicas de filmagem, conseguimos contar a história. Depois mudei para São Paulo onde estudei teatro na cidade de Paulínia, na Região Metropolitana de Campinas e lá mais uma vez o cinema estava presente. Era a época do projeto “Magia do Cinema e vários filmes estavam sendo rodados na cidade e participei de algumas figurações na época. Em 2011 fui para Cachoeira, na Bahia, já em 2011, para estudar museologia. Quando cheguei fiz uma transferência interna para o curso de cinema e aquele foi um dos dias mais felizes de minha vida. 

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David Aynan (Divulgação).

Membro fundador do Movimento de Cinema Negro Tela Preta e até ano passado conselheiro fiscal da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), como tem sido seu trabalho? Poderia nos relatar sobre a origem do Movimento?
Quando cheguei à Cachoeira no auge do governo Dilma Roussef as pautas eram por mais direitos, muito diferente de hoje que giram em torno de não os perder. Participei do movimento estudantil, lutando por melhores condições de permanência para alunos negros e de baixa renda na UFRB e paralelamente comecei minha caminhada no núcleo de estudantes negros o Akofena, me juntando ao trabalho de Larissa Fulana de Tal, que era membro do grupo e estudante de cinema do 5° semestre.   

É nesse contexto que nasce o movimento de cinema negro Tela Preta. Eu, Larissa fulana de Tal e Ailton Pinheiro, um jovem militante do movimento negro e cineasta mineiro, fundamos o Tela Preta para juntos enfrentarmos o racismo dentro do curso de cinema e no mercado audiovisual.  Fizemos nossa primeira produção autoral em 2013, Canções de liberdade, dirigido por mim. Um filme de cinco minutos, feito para a internet, como trabalho final da disciplina de documentário. Logo depois fizemos dois filmes financiados pelo edital curta afirmativo 2012: Cinzas (2015), de Larissa Fulana de Tal, e Poesia Azeviche (2018), de Ailton Pinheiro. Em seguida, realizamos Lápis de Cor (2016). Também de Larissa, dessa vez financiado pelo Canal futura. Em 2014 ganhamos a segunda edição do curta afirmativo desta vez com um filme meu O Som do Silêncio, lançado em 2017. Entre outras coisas realizamos cineclubes, oficinas, seminários que foram produzidos ao longo desses oito anos. 

Poderia nos relatar sua experiência como diretor, designer de som e montador?
Sou o diretor, roteirista e montador de meus filmes. Alguns “dogmas” do cinema nos indicam que é melhor ter várias mãos no processo de confecção de um filme, mas cada diretor cria seu próprio método. O meu é o de exercer minha arte através dessas três áreas. Como designer de som tenho atuado nos filmes de parceiros, creio que muito por minha visão sistêmica da obra, que vem de minha experiência como diretor, que me permite processar o desenho sonoro de forma a contribuir mais com os projetos. A direção, por sua vez, é o lugar onde me sinto mais completo e confortável, apesar de amar todas as áreas a que me disponho executar.

Meu último filme, Um Ensaio Sobre a Ausência (2018), é mais um desses processos em que executo várias funções. Antes de tudo, explico que escrever e dirigir constituem um gesto autoral, mas, sobretudo, político, pois a história do cinema no Brasil, em função de sua hegemonia branca de classe média e alta, sempre tentou nos relegar, aos negros, os espaços de menos visibilidade e remuneração, assim como tudo na sociedade ocidental. Todavia, estar no lugar de controle das narrativas é um gesto político extremamente potente e minha formação política e característica de personalidade não me permitiriam atuar de forma diferente. 

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Cena de Ensaio Sobre a Ausência, de Aynan. (Divulgação).

Sobre o Cinema Negro, a ideia de “uma história do cinema insubordinada (ou rebelde)”, toda a ser feita, que atua como contra informação e resistente a uma perspectiva industrial, tal como propõe a estudiosa Nicole Brenez , seria válida?          
Com certeza, todo o gesto que vá na contramão das imposições colonizadoras que a história do cinema ajudou a criar e solidificar é válido. É preciso sim recontar essas histórias a partir de perspectivas que não sejam a do colonizador. O cinema e audiovisual ajudaram a consolidar opressões e foi ponta de lança do projeto de dominação neocolonial em todo o mundo. Cinemas negros foram produzidos em África e na diáspora desde os primórdios da sétima arte e invisibilizá-los faz parte de um projeto de dominação. Os cursos de cinema, e isso inclui o curso da UFRB, estão povoados por homens e mulheres brancos de classe média que se interessam, no geral, pelas suas próprias histórias, a história do cinema eurocêntrico, por isso não há gestos claros e objetivos de abrir as grades para se pensar outros cinemas que não seus próprios reflexos.

Quando, raramente, rompem a barreira e se aventuram por outros cinemas que não o da hegemonia EUA/Europa, não conseguem furar o bloqueio da exotificação. Tão pouco buscam elaborar propostas que vão além dos filtros que a Europa determina. O filtro dos filmes que foram exibidos nos grandes festivais. É como se só fosse possível existir cinematograficamente a partir do olhar, quase sempre objetificante e exotizante do europeu para o outro. Os grandes festivais internacionais figuram como atuantes instrumentos de dominação. Sobretudo porque é a Europa, ou melhor, a ideologia eurocêntrica que determina o que deve e merece ser visto. 

É preciso sim recontar essas histórias a partir de perspectivas que não sejam a do colonizador.

Como romper com essa estrutura?
Romper com esse modelo é um gesto complexo pois, em princípio, não deve ser o de negar a existência dos filmes consagrados por uma história do cinema viciada, como uma lista de filmes que não devem ser vistos ou estudados. Esses filmes são fundamentais e nos dão subsídios para entender tanto os modelos e formas empregadas no processo de colonização mental do século XXI quanto são documentos importantes sobre comportamentos, visões e hábitos dos povos que colonizaram o mundo. Por isso mesmo, uma leitura crítica da história passa por revelar o que a hegemonia buscou ocultar, os filmes que não foram permitidos ser vistos e também analisar os filmes que foram permitidos serem vistos a partir de um prisma diferente. 

Uma filmografia em destaque?        
Hoje, o que me movimenta é a efervescência do cinema negro que está sendo produzido no Brasil. O século XXI nos traz filmes extremamente potentes, que discutem os maiores dilemas do povo negro e o fazem com muita propriedade e talento tanto na forma quanto no discurso. Nomes como Vinicius Silva, Everlane Moraes, Ana do Carmo, André Novais, Fabio Rodrigo, Viviane Ferreira, Taís Amor Divino encabeçam essa geração de cineastas que impulsionam um cinema extremamente potente no país. 

O que dizer da referência incontornável que constitui a obra do cineasta senegalês Ousmane Sembène?   
Sembène me veio como um oásis. No período em que eu estava entrando na universidade, estamos falando de 2011 e 2012, poucas eram as publicações sobre cinema negro e o acesso aos filmes era limitado. O cinema europeu sempre me trouxe certo desconforto. Não somente pela ausência de identificação com os corpos representados, mas sobretudo pelos temas que me soavam pouco interessantes em sua maioria. Então fui para a internet buscar referenciais negros no cinema. Eu já tinha ouvido falar de Zózimo Bulbul, principalmente através de Larissa Fulana de tal, mas muito pouco sobre o cinema de Sembène. Foi daí que pesquisando encontrei um site e lá eu tive contato com Sembène, Diop Mambéty, Souleymane Cissé, entre outros. Mas Sembène foi o de maior impacto. Tanto por sua crítica contundente ao colonialismo, quanto sua autocrítica, trazendo à luz questões inerentes ao povo africano. 

No seu entender, deve-se abolir ou até mesmo boicotar filmografias e/ou cineastas em função desse olhar eurocêntrico que predomina na produção cinematográfica mundial?            
Não consigo pensar nesse caminho como um caminho viável ou mesmo produtivo. Se não assistir aos filmes como saberei do que eles falam, como imprimir minhas próprias impressões. Que alguns filmes não devam ser vistos, não acho inteligente. Eles têm que ser vistos e pensados à luz do que representam. Um filme fala tanto de um tempo, de uma era, de um pensamento, que vem como um documento poderoso de como uma sociedade olha pra si mesma e, mais ainda, de como ela gostaria de ser vista. Os filmes têm um poder imenso, tanto de consolidar visões, como de desconstruí-las. 

Um filme fala tanto de um tempo, de uma era, de um pensamento, que vem como um documento poderoso de como uma sociedade olha pra si mesma e, mais ainda, de como ela gostaria de ser vista.

Existe distinção entre Cinema de Assunto Negro e Cinema de Autor Negro?
Vejo a discussão sobre o conceito de cinema negro como um terreno pantanoso, em que a maiorias dos teóricos com os quais estou tendo acesso no campo do debate contemporâneo se furta. A pergunta que surge sempre é: há necessidade de formular um conceito para o cinema negro? A que serve formular esse conceito? Bom, como eu, além de ser artista, integro os movimentos sociais, acredito que é possível teorizar sobre o que existe.

Essa distinção entre cinema de assunto e cinema de autoria negra aparece aqui no Brasil através do texto de David Neves na década de 1960, mais precisamente em 1968, quando é publicada no Brasil a tese defendida por David Neves, em Gênova, na Itália, em 1965, na 5° Resenha do cinema latino-americano intitulada “O cinema de assunto e autor negros no Brasil”. Neves defendia que à época, no país, inexistiam autores negros, mas que o cinema de assunto negro era proeminente.

Ele analisa cinco obras que ele chama de “cinema negro” que são: BarraventoGanga ZumbaAruandaEsse Mundo é Meu Integração Racial. Mas, para mim, a questão realmente relevante é outra: o negro ao fazer cinema sempre fará cinema negro? Penso que não pelo simples fato de que é justamente a junção de assunto e autor que, vias de regra, norteia o que é percebido como cinema negro. A meu ver não é possível afirmar que no filme Shame, ou mesmo Hunger,de Steve McQueen, estejamos falando de um cinema negro. Porém, estamos sim falando de um negro fazendo cinema. As questões se amplificam à medida em que nós fazemos mais indagações como, por exemplo, o que é um assunto negro?

De qualquer forma eu penso que três elementos são estruturantes do cinema negro, o primeiro é o autor que se autodeclara negro, o segundo é o “assunto” negro e o terceiro está no ponto de vista, pois ainda que um negro esteja dirigindo, o assunto seja negro, se o ponto de vista não for negro creio que será difícil perceber esse filme como cinema negro, porque um assunto negro pode muito bem ser abordado a partir de outro ponto de vista. 

Algo a acrescentar? Como gostaria de concluir essa entrevista?
Eu amo as narrativas, é através delas que nós, povos negros do mundo, conseguimos manter nossa história viva. Ainda que tenhamos inventado a escrita há milhares de séculos foi na palavra falada, nas histórias que carregamos por séculos, que levamos nossa alma, nossa força, nossas trajetórias, nossos princípios morais e filosóficos. O cinema, com toda a sua tecnologia e beleza, é mais uma ferramenta de que a gente se apropria para fazer o que sempre fizemos: contar histórias. Um bom orador usa das palavras para criar belas imagens. Acreditar na força dessas imagens é a alma de um grande cineasta. 

Fernanda Aguiar Carneiro Martins possui Pós-doutorado em Artes pela Universidade Panthéon Sorbonne – Paris I. Professora do Colegiado em Cinema e Audiovisual da UFRB – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, é fundadora e líder do LACIS – Laboratório de Análise e Criação em Imagem e Som, do qual David Aynan participa como pesquisador.

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