Crítica: Asa Quebrada conta a história secreta das mulheres na Espanha do século 20

asa
8.5

Antonio Altarriba é um narrador afetivo da história de seu país, a Espanha. E faz isso remexendo nas histórias de sua família, olhando para dentro dos cotidianos das pessoas comuns que vivenciaram as transformações violentas do século 20. Em A Arte de Voar, Altarriba, ao lado do desenhista Kim, perpassa quase 100 anos de história ao falar da vida de seu pai, um anarquista que lutou na Guerra Civil Espanhola, fez parte da Resistência Francesa e chegou a ser enviado a um campo de concentração. Agora, com Asa Quebrada, os autores retomam essa saga familiar-histórica pelo ponto de vista da mãe, Petra, uma mulher religiosa e discreta. Tão discreta que passou a vida inteira com o braço esquerdo praticamente paralisado sem que ninguém percebesse.

Asa Quebrada mostra que a história também é construída longe dos palcos dedicados aos heróis. Ao se aprofundar na vida dessa personagem silenciosa Altarriba e Kim descortina a memória de diversas pessoas que agiram nas sombras para proteger aqueles que amam em um tempo de extremos. Petra nasce em meio a um evento de proporções melodramáticas: sua mãe morreu ao lhe dar à luz, o que fez com que seu pai, descontrolado pela perda, tentasse matar a própria filha recém-nascida. Na confusão do momento ela acaba machucando o braço, o que a afetaria por toda a vida.

Mas, à exceção desse episódio, a vida de Petra seria marcada por discrição. Se fez mulher religiosa, bastante prestativa e modesta. Não raro era explorada por todos a quem tentava ajudar. Isso não a impediu, portanto, de fazer parte de períodos importantes da história espanhola ao ser testemunha de conspirações entre militares e monarquia no início do século passado.

A partir da história de Petra, os autores prestam uma homenagem a todas as mulheres, que à sua maneira, conseguiram superar provações para proteger a família. Ao longo de todo o livro, Petra e seu braço quebrado são colocados em meio a intempéries políticas: mudanças de casa, perda de patrimônio, velhice sem dinheiro, hipocrisia da igreja a qual dedicou sua vida, humilhações de toda sorte. O que se mantém constante é a abnegação de Petra e a tentativa de não se fazer notada.

Longe de pura resignação, a vida de Petra mostra uma geração de mulheres que lutaram pela própria emancipação com coragem, em um país dominado por homens, mesmo que não tenham sido elevadas à heroínas de sua tragédia. A HQ mostra o drama de outras mulheres espanholas e suas vidas secretas: enquanto Petra ditava normas quanto aos seus direitos sexuais, outras colegas mostravam sinais de violência doméstica.

Altarriba e Kim contam a história em tom melancólico, seguindo o estilo de A Arte de Voar. A arte de Kim segue austera, sem extravagâncias, mas com um incrível manejo das expressões nos rostos dos personagens. O modo como consegue transpor emoções em seus traços é algo quase naturalista. No roteiro Altarriba fez uma espécie de reparação às mulheres que sofreram em segredo, mas seu roteiro é cru e desolador, sem condescendência. Não há discurso maniqueísta ou tentativa de explicar causas e possibilidade dessa vida de desolação. Ao fazer isso o autor elevou ainda mais a história de Petra e outras mulheres ao contar suas experiências com o máximo de honestidade possível.

Ao lado de A Arte de Voar, Asa Quebrada é uma das narrativas mais importantes do quadrinho espanhol e um poderoso registro da história do século passado.

ASA QUEBRADA
De Antonio Altarriba e Kim
[Veneta, 272 páginas, R$ 64,90 /2018]
Tradução de Marcelo Barbão

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Editor