Crítica: Deadpool e nossa volta à infância

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Os filmes de super-heróis, ao que parece, estabeleceram-se como novo gênero de Hollywood.

Dentro deste gênero, consequentemente, há variações de categorias (que nunca se apresentam em estado puro, naturalmente), como a ação, sob cuja classificação se espremiam quase exclusivamente os filmes pioneiros (X-Men, Homem-Aranha), a comédia (Besouro Verde e Lanterna Verde), e, menos explorado, o drama, que teve em Watchmen (um arremedo dos quadrinhos de Alan Moore que, curiosamente, ainda que altamente fiel à versão original, parece ter perdido na tela a grandiosidade que o consagrou nas páginas) sua primeira tentativa, e na bem-sucedida trilogia Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan, a consagração.

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Deadpool, nesse contexto, está obviamente situado na antessala da comédia. Mas na comédia que se potencializa porque resvala no trágico. O protagonista, interpretado por Ryan Reynolds, tem rosto e corpo desfigurados após ter sido submetido a intermináveis sessões de tortura na tentativa de ver-se curado de um câncer terminal. A situação é, em puro estado, abominável. É hilária, todavia, a forma com que o personagem lida com ela. Enfiando-se em um uniforme de couro vermelho e abusando da auto-depreciação. E de uma auto-depreciação que não recai só sobre si, personagem, ou sobre sua vida desenganada, mas que extravasa para o próprio universo Marvel, e para o filme, ele mesmo: há piadas sobre o orçamento (a película foi rodada com “míseros” 60 milhões, ante os 450 milhões, publicidade não contabilizada, de Batman vs. Superman), sobre a equipe, os intérpretes, etc.

Deadpool é daqueles filmes que não têm compromisso nenhum, salvo com a diversão dos que o assistem. Por isso, é um filme que não se presta facilmente à análise. Esteticamente, tudo nele obedece à sua função primordial. E esta função, bem cumprida, e tão bem cumprida, provoca a suspensão momentânea do senso crítico. É daqueles filmes que nos volvem à infância, à época em que o cinema era meramente cinema, e não a instituição sagrada na qual ele se torna tão logo passe a ser encarado com seriedade de um profissional. Daqueles filmes que nos lembram de como era ver um filme sem o esforço de enquadrá-lo em uma impressão técnica. Que nos remetem à pureza do assistir cinema, enfim, e alegrar-se com cinema, e de fazer dele um acessório de um instante de vida. Neste sentido, Deadpool é um filme infantil para adultos. De uma diversão inocente construída sobre um enredo completamente malicioso. Porque assim é o mundo adulto: acre, brutal. E este humor extraído da brutalidade é exímio, no ponto.

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O filme, que se mantém cruelmente encantador até o quase-fim, derrapa nos momentos derradeiros. É no confronto final entre Deadpool e seu arqui-inimigo que se tem a sensação de, pela primeira vez, estar-se diante de um filme do gênero super-heróis. A narrativa que até então, por mais coesa e cronológica que fosse, só era fiel ao timing do humor do protagonista, cede, então, repentinamente, lugar ao protocolo do confronto entre o bem e o mal, do resgate da mocinha, protocolo que introduz um fator de organização que não casa bem com toda aquela anarquia precedente.

O saldo não deixa, com isto, de ser positivo. Deadpool dá mais indicações de um caminho a ser seguido pelo cinema – o caminho da idiossincrasia de roteiristas pouco preocupados com questões de ordem (surpreende o fato de o filme não se contorcer para encaixar-se às faixas etárias de 12 ou 14 anos) – do que metade dos filmes indicados ao Oscar.