Crítica: Fico Besta Quando Me Entendem – Entrevistas com Hilda Hilst

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Foto: Divulgação
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Considerada maldita, pornográfica e hermética, Hilda Hist ainda luta por reconhecimento anos após sua morte

Por Renata Arruda

Hilda Hilst sofreu durante toda a sua carreira como poeta, dramaturga, cronista e romancista: suas peças não eram montadas, seus livros não eram distribuídos, sua poesia não era acessível; passavam-se os anos e sua obra ficava esquecida, não relançada. Até que já no fim de sua vida, e após apelar para o que a própria chamava de “bandalheira” ao escrever livros pornográficos para poder ser lida, Hilda pôde ver seus trabalhos serem lidos, através do relançamento de toda sua obra pela Globo Livros a partir de 2001. Vindo a morrer em 2004, Hilda penou durante toda a vida sendo obrigada a se dar conta de que só seria lida depois de morta – e ainda assim muitos desconhecem sua importância.

Tida como autora hermética, complexa e grotesca, a mais recente publicação Fico Besta Quando Me Entendem – Entrevistas com Hilda Hilst, organizado por Cristiano Diniz e lançado pelo selo Biblioteca Azul, busca dar voz a Hilda e desfazer a fama de “escritora difícil” que tanto afastou o público. Em vinte entrevistas (todas realizadas pessoalmente, assim escolhidas por opção de Diniz) que abarcam cinquenta anos de carreira (1952 a 2002), testemunhamos uma Hilda ainda jovem, confiante na qualidade do seu trabalho e na possibilidade de viver deste, de tal forma que chegou a abandonar toda uma vida animada de eventos, festas e encontros para se isolar no sítio que chamou de Casa do Sol – local onde poderia receber amigos escritores, criar seus cachorros e se dedicar integralmente `a escrita, que levava muito a sério.

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Em entrevista a Delmiro Gonçalves, publicada no Estado de São Paulo em 1975, ela comentou: “Quero ser lida em profundidade e não como distração, porque não leio os outros para me distrair mas para compreender, para me comunicar. Não quero ser distraída. Penso que é a última coisa que se devia pedir a um escritor: novelinhas para ler no bonde, no carro, no avião. Parece que as pessoas querem livrar-se assim de si mesmas, que têm medo da ideia, da extensão metafísica de um texto, da pergunta, enfim” (p. 30). Com o passar do tempo, Hilda começa a reclamar de editores que não distribuem devidamente seus livros (“parece que ele não quer que ninguém me leia. jamais encontro meus livros em livrarias”) e outros como Luiz Schwarcz que, segundo ela, deixavam de investir em literatura de qualidade para investir 3 milhões de Cruzeiros em um livro de Bruna Lombardi, considerada por Hilda “uma marca”.

Uma dessas entrevistas chegou inclusive a causar mal estar entre Hilda e Caio Fernando Abreu, seu amigo, ao declarar que “não que ela [Bruna] não mereça esse dinheiro, mas é um absurdo o sr. Schwarcz deixar um escritor que ele edita, como é o caso de Caio Fernando Abreu, lavar pratos em Londres porque aqui o trabalho dele é desprezado em detrimento dessa subliteratura” (p. 145). A falta de papas na língua e da vontade de aparecer, circular e dar palestras, talvez tenham contribuído ainda mais para o silêncio gerado em torno da sua obra.

A autora apelou para a pornografia, criando na verdade uma espécie de “pornô cult”, pela inegável qualidade dos seus textos que em nada devem a uma tal “boa literatura”, e ficou carimbada no senso comum como autora obscena, maldita, em detrimento de toda a sua obra anterior, complexa e de cunho filosófico. Ainda assim, Hilda continuou desconhecida do público, sem dinheiro para pagar suas contas e passou a se conformar em ser uma autora para poucos. Até desistir completamente de escrever. Ao anunciar sua aposentadoria para a Folha de São Paulo, em 1999, ela declarou: “Ninguém me lê, nesses quase cinquenta anos foi assim, e me descobriram só agora, que estou quase morrendo. Eu ouço dizer muito que as pessoas não me entendem, e quando alguém me entende eu fico besta”(p.184).

Em um belo trabalho editorial, trazendo uma charmosa edição ilustrada com desenhos da própria Hilda, Fico Besta Quando Me Entendem faz jus à sua obra, servindo tanto como um apêndice para iniciados quanto como introdução para os curiosos, que irão se divertir e se aprofundar no brilhantismo bem humorado de uma autora que mesmo colocada no patamar de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, ainda há quem desconheça seus escritos.

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FICO BESTA QUANDO ME ENTENDEM – Entrevistas com Hilda Hilst
[Editora Biblioteca Azul/Globo Livros, 242 páginas / 2013]
Organizador: Cristiano Diniz