Crítica HQ: Azul é A Cor Mais Quente, de Julie Maroh

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Autora denuncia imposição dos outros contra a felicidade dos gays  Foto: Divulgação/Martins Fontes

É DURO SER O QUE É
HQ Azul É A Cor Mais Quente apresenta um retrato sensível e multifacetado da homossexualidade feminina

Por Rodrigo F.S. Souza

“Só o amor pode salvar o mundo. Por que eu teria vergonha de amar?”

Preconceito é um mal que atormenta indivíduos da espécie humana talvez desde o seu surgimento. Basta uma análise de nossa história neste planeta para encontrarmos inúmeras histórias de minorias que sofrem por serem diferentes do que a maioria julga “normal” e “correto”. Mulheres, negros, indígenas, judeus, deficientes, homossexuais, e a lista continua… Tememos o diferente por não compreendê-lo, de modos que é sempre louvável quando um artista empenha-se em desmistificar o que, numa primeira olhada, nos parece anormal, e expor o que há de humano por trás do que nos desperta repulsa, medo ou confusão. Azul é a Cor Mais Quente conta a trajetória de uma menina que, para tornar-se mulher, e aprender a amar-se como era, teve que vencer o preconceito da sociedade e de si mesma diante da descoberta de sua própria sexualidade. E este é apenas um dos inúmeros motivos que tornam a HQ francesa publicada no Brasil pela Martins Fontes uma obra que merece a nossa atenção.

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Contando sua história em forma de diário, Julie Maroh torna o leitor um confidente de Clémentine, protagonista que encontra na escrita uma das válvulas de escape para as angústias e crises de identidade que passam a atormentá-la quando começa a sentir que há algo “errado” com sua sexualidade. É possível sentir em suas palavras o peso das imposições sociais, do que lhe foi ensinado como a maneira correta de conduzir sua vida sexual.

Clémentine inicialmente tenta adequar seu desejo ao que normalmente se espera de uma garota, especialmente depois de tornar-se fascinada por uma jovem de cabelos azuis com quem cruzou “por acaso” no mesmo dia em que marcara um encontro com o primeiro garoto com quem tentou namorar. É a partir deste dia que sentimentos conflituosos se intensificam, e a vida de Clémentine mergulha numa sequência de desassossegos, sonhos e fantasias eróticas envolvendo uma versão idealizada da moça de cabelos azuis, a personificação de um desejo que não para de crescer desde aquela primeira vez em que se viram.

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(Divulgação/Martins Fontes)

Toda a gama de sentimentos causadores e provenientes destes conflitos internos de Clémentine, incluindo o preconceito contra si mesma, contra o “erro” que julga estar cometendo ao sentir-se atraída por alguém do mesmo sexo, é muito bem explorada por Maroh: a rejeição do pai, que não aceita a inclinação de Clementine, algo que transforma-se no dramático catalisador do ato final do álbum; as tentativas inúteis de ignorar sua própria sexualidade, envolvendo-se em protestos sem engajamento político, frequentando baladas sem dar vazão a seus desejos, fugindo de uma diversão para outra, consumindo álcool, a fim de entorpecer-se para anular um desejo que não cala; a negação do desejo quando a rejeição das “amigas” a atingem diretamente, quando passam a desconfiar de sua inclinação sexual; a revolta que nasce de sentimentos conflituosos, resultado da luta para entender o que sente, e da repressão de seus desejos. Há uma real paixão na maneira como a autora retrata a trajetória da personagem.

A história é escrita de forma bem sensível e procura expor com honestidade, gradativa e cuidadosamente, a aceitação de um sentimento que se torna mais forte e urgente, e a satisfação de descobrir que não está só em seu desejo por alguém do mesmo sexo. A conversa entre Clémentine e Emma no parque é uma das que melhor expõem os fatores psicológicos envolvidos no despertar da homossexualidade, contribuindo para a compreensão a partir do ponto de vista de quem a experimentou muito cedo, que aprendeu ser feliz com ela. Sem soar panfletário, o depoimento confessional de Emma é, acima de tudo, humano.

As cenas de sexo presentes na HQ surgem com naturalidade, e mesmo intensas e apaixonadas, respeitam a intimidade das personagens. Não há closes invasivos e pornográficos, mas eróticos. É uma consequência incontornável e necessária para mostrar visualmente a paixão por muito tempo represada por Emma e Clémentine. É um ato impulsionado por um senso de urgência e pelo desespero de tornar o desejo ato, toque, estímulo e gozo, tanto físico quanto psicológico.

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O sexo na HQ é algo incontornável, e sobretudo, erótico (Divulgação/Martins Fontes)

Os desenhos de Julie Maroh possuem um traço bem solto, muitas vezes irregular e com problemas de proporção, além de apresentarem algumas expressões faciais e corporais que não fazem jus ao sentimento que buscam expressar. Mas dada disto chega a comprometer a qualidade do roteiro, e o restante da linguagem visual imaginada por Maroh. Um de seus méritos é o modo sutil e bem executado que usou para indicar elipses temporais: afastar um pouco mais os quadrinhos de um seguimento para outro. Mas o maior acerto da artista foi na escolha de cores melancólicas e desbotadas nas sequências do presente, e no uso de tons de cinza e sépia para os trechos do passado, onde se passa a maior parte da história.

As cores das cenas ambientadas no presente são sem vida, sem calor humano. Apesar de mais variadas que as vistas nos flashbacks, elas passam uma impressão de homogeneidade. Enquanto no passado o azul indica a aproximação ou presença do objeto do desejo, e mais adiante do foco do amor, no presente as múltiplas cores lavadas parecem indicar caos, desordem, e ausência da única cor/sentimento desejado: a cor azul da completude, o azul do fogo que vivifica, que preenche, que faz o coração pulsar desejoso de mais prazer e amor.

As diferenças entre a HQ e a adaptação para o cinema

E já que mencionei uso da cor na HQ, vale dizer que este é um dos pontos positivos dela com relação à adaptação da história para o cinema, que venceu o último festival de Cannes. Na HQ o uso da cor azul é mais pontual, enquanto no filme ela aparece muitas vezes sem muito critério, soando como puramente burocrática, em vez de expressar a presença do desejo em determinadas situações. O fato de boa parte da história em quadrinhos ter sido feita em tons de cinza e sépia fizeram com que a cor se destacasse mais, ao contrário do que ocorre no filme.

Mas talvez a maior diferença entre a HQ e o filme é a mudança do nome da protagonista. Na adaptação para o cinema ela foi rebatizada de Adèle, uma escolha que reflete a abordagem do diretor, Abdellatif Kechiche, para quem era importante que Adèle Exarchopoulos, a atriz que interpretou a protagonista, incorporasse traços de sua própria personalidade à da personagem.

Outra diferença entre a HQ e o filme é que ela é contada em forma de diário, enquanto o filme não adota esta estrutura narrativa, e conta a história linearmente, por contar com as emocionantes atuações das atrizes para transmitir a miríade de sentimentos que o traço de Maroh, irregular e carente de mais expressividade, não dá conta sem o auxílio do texto no álbum.

Além disto, apesar do filme mostrar cenas de Adéle com os pais, seu roteiro pouco explorou da relação dela com eles. Na HQ, a maneira como os pais descobrem a homossexualidade da filha é fundamental para o início do dramático e melancólico terceiro ato da história. A presença dos pais de Adéle no filme serviu apenas para contrastar a relação de Emma com seus pais. Depois que as duas passam a morar juntas no filme, nada mais é mencionado sobre os pais da protagonista, tornando este um dos pontos em que o filme mais se distanciou da HQ.

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O filme deu mais tempo para detalhar relação das duas (Divulgação/Martins Fontes)

No filme todas as nuances psicológicas são exploradas em mais detalhes. Há versões estendidas de diálogos da HQ, que detalham um pouco mais da história de Emma e Adéle/Clémentine. Claro que a duração do filme (quase três horas) ajudou bastante neste aspecto, assim como enorme talento exibido pelas duas atrizes principais, que interpretaram seus papeis com uma entrega e paixão que impressionou muita gente, especialmente nas cenas de maior teor sexual.

E o conhecimento de Emma sobre filosofia, que é rapidamente mencionado na HQ, no filme ganhou uma importância maior para o amadurecimento da relação entre ela e Adéle. Talvez o ponto em que o filme mais supera a HQ seja em seu terço final, que mostra em mais detalhes a vida que Emma e Adéle tiveram após passarem a morar juntas. Na HQ muito pouco desse período da vida da protagonista é mostrado, enquanto no filme é essencial para definir o destino final de Adèle, que é muito diferente do que ocorre a Clémentine no álbum. Enquanto no filme ela termina tendo que conviver com os erros que cometeu, no quadrinho a personagem recebe a chance de se redimir.

Independente das qualidades e efeitos de ambas as versões, tanto a HQ quando o filme merecem ser, respectivamente, lido e assistido. São abordagens diferentes de uma mesma história, mas cujo principal propósito é despertar no leitor/espectador compaixão e simpatia por duas pessoas que tem o coração partido e a alma devastada por uma desilusão amorosa, e a vida iluminada quando sente que, enfim, encontrou o amor verdadeiro. E somente ele pode salvar o mundo.

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De Julie Maroh
[Martins Fontes, 160 págs., R$ 39,90 / 2013]

Nota: 9,0