Crítica-HQ: Livro resgata atrocidades da guerra do Sendero Luminoso contra o governo do Peru

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O Peru foi devastado por uma guerra entre os anos 1980 e 1990 entre as forças militares e o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso. Mas as maiores vítimas foram camponeses pobres, pegos no fogo cruzado dessa luta sangrenta. Cerca de 70 mil pessoas foram mortas, além de um número ainda incerto de desaparecidos e presos. Não conhecemos bem essa história por conta do histórico de exploração imperialista – além de outros contextos históricos, que nos alienou do passado de nossa América Latina. Agora está disponível no Brasil a HQ Sendero Luminoso – História de uma Guerra Suja, de Alfredo Villar, Luis Rossell e do desenhista Jesus Cossio, que recupera esse período de violência.

A distância geográfica que temos com o Peru, país que faz fronteira com estados do Norte do País, contrasta com o afastamento que temos em relação à cultura e memória de lá. A HQ faz um resgate histórico a partir de dados coletados na Comissão da Verdade peruana entre 2001 e 2003. Cossio, desenhista e principal roteirista do livro montou a narrativa a partir de episódios emblemáticos que aconteceram desde o surgimento do Sendero.

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O livro ganhou bastante repercussão no país andino por resgatar uma memória que foi sendo silenciada ao longo dos anos. Os autores deixam claro os interesses políticos e de classe que reprimiram essa história coletiva. Com atuação prioritariamente rural, as elites e a classe média peruanas se distanciaram de um envolvimento com o caso, mesmo ainda hoje. Outro ponto importante da obra é elencar controvérsias do grupo. Na narrativa dos autores não há dicotomia e ambos os lados (governos e guerrilheiros) praticaram atrocidades. O que fica claro é que a exploração e humilhação impostas aos camponeses deu-se, sobretudo, por racismo e ódio classista.

O Sendero Luminoso surgiu como muitos grupos paramilitares na América do Sul e Central, ou seja, agregando descontentamentos do sistema político atual baseado em uma leitura particular do socialismo. No caso deles foi o maoísmo a principal inspiração. Surgidos a partir de um grupo de intelectuais, o principal líder do movimento foi Abimael Guzmán, professor de filosofia da Universidade de Ayacucho, que definiu as bases ideológicas do Sendero ainda nos anos 1960. Foi nos anos 1970 que o Sendero iniciou suas ações, cujo objetivo principal era acabar com instituições capitalistas do Peru através de uma revolução socialista liderada pelos camponeses.

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Na prática, os camponeses sempre estiveram longe da liderança. A HQ mostra que o Sendero desrespeitava tradições e costumes dos povos andinos agricultores, forçando-os a mudar desde práticas agrícolas até insumos cultivados. A tática era atacar os povoados de surpresa e implantar o novo estilo de vida. Eles também escolhiam novos líderes para os camponeses, geralmente escolhidos entre aqueles que mais colaboravam com a nova situação, o que desrespeitava tradicionais lideranças comunitárias. Quando os conflitos com os militares eram iminentes, os senderistas promoviam uma fuga em massa das vilas, o que forçava uma vida de privação nas montanhas. Em uma das passagens mais duras do livro é mostrado o assassinato de centenas de crianças camponesas. O motivo: o barulho do choro delas estava atrapalhando a fuga planejada pelo grupo.

Do lado do estado, as atrocidades também impactavam. O governo peruano aplicou táticas conhecidas dos regimes totalitários latinos do século passado, como torturas e desaparecimentos. Com um registro documental preciso e meticuloso, a HQ do trio é um dos maiores exemplos da contribuição dos quadrinhos para o resgate de uma memória coletiva esquecida. Os desenhos de Cosso são duros e sem verniz: o formalismo do traço e o tom explícito da narrativa ajuda a criar um envolvimento maior com o tema. É uma forma de deixar ainda mais evidente que esse passado precisa vir à tona do modo como foi, por mais perturbador que isso seja.

A obra aproxima-se de clássicos dos quadrinhos baseados em fatos reais, como Notas Sobre Gaza, de Joe Sacco e O Fotógrafo, ainda que seja impreciso classificar Sendero Luminoso como “jornalismo em quadrinhos”. A edição da Veneta reúne dois livros lançados no Peru entre 2008 e 2010, Rupay – Histórias graficas de la violencia en el Perú, 1980-1984 e Barbarie – Comics sobre Violencia Política en el Perú, 1985-1990. Cossio fez sucesso no país com esses trabalhos e tornou-se um dos nomes mais importantes dos quadrinhos andinos com uma obra que merece ser mais conhecida aqui no Brasil.

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