Crítica: HQ O Bicho Que Chegou à Feira traz o brilho e força das obras afrocentradas

Baseado na obra de Muniz Sodré, o quadrinho traz uma narrativa sobre cultura e ancestralidade em meio à ditadura militar

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Crítica: HQ O Bicho Que Chegou à Feira traz o brilho e força das obras afrocentradas
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O Bicho Que Chegou à Feira, adaptação em HQ do livro de mesmo nome de Muniz Sodré chama atenção por tirar seu brilhantismo do roteiro afrocentrado, pensado a partir de uma ótica que muitas vezes é negligenciada na literatura e nas artes em geral. O livro saiu no final do ano passado e traz artes de Allan Alex, Alex Genaro, Eduardo Schloesser, Hugo Canuto e Naara Nascimento.

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A trama se passa nos anos 1960, em meio à ditadura militar e acontece em Feira de Santana, no Sertão Baiano. A narrativa foca na vida de Antão das Neves, um homem negro de classe médio não muito interessado no desenrolar político daquele período conturbado. Mas sua vida muda drasticamente quando a repressão militar, personalizada pelo comandante Capelão, passa a vigiá-lo e aos seus amigos. A partir desse momento, Antão mergulha fundo em suas raízes ancestrais em busca de respostas, mas não sem antes lidar com diversas dúvidas, inseguranças e tensões entre sua vida cotidiana e a ditadura.

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Eventualmente, o protagonista vai encontrar forças na cultura afro e na ancestralidade para lidar com seu entorno, com a discriminação racial e com a própria repressão. Mas o roteiro não traz soluções fáceis e mostra diferentes nuances dessa jornada do personagem principal. A complexidade fica ainda maior com a entrada na trama de Tina, sua filha de ideias revolucionárias, que colocam sua vida em risco.

A busca por autoconhecimento nunca traz respostas fáceis e a ficção histórica de Sodré destaca que nossas questões internas, a relação com a religião e a cultura não está dissociada de uma vivência política. A adaptação de um livro cheio de complexidade e poesia como este de Sodré foi um desafio e tanto e a HQ cumpre bem o objetivo ao buscar uma experiência cheia de camadas e com soluções que tentam evidenciar a riqueza da cultura afro, sobretudo as páginas finais.

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Nem sempre o objetivo é alcançado, porém, e o quadrinho muitas vezes se mostra sufocado pela obra original, o que rende páginas estáticas, com excesso de texto, e uma dependência grande em não ignorar nenhum detalhe do livro de Sodré. Tal reverência talvez tenha impedido os autores de trazerem uma leitura mais solta e que servisse mais à linguagem dos quadrinhos. Mas também há momentos em que o olhar artístico dos autores brilham com força, como nas páginas de abertura, as mudanças de estética entre os diferentes desenhistas e a surpresa do uso de cor em meio à narrativa preto e branco.

Obras afrocentradas, que buscam uma compreensão da vida a partir da experiência e cultura afrobrasileiras, é uma raridade e merecem ser enaltecidas. A obra saiu através do Selo Literário João Ubaldo Ribeiro, do Fundo de Cultura do Estado da Bahia (FCBA) e merece chegar a mais leitores em todo o Brasil.

O BICHO QUE CHEGOU À FEIRA
De Marcelo Lima (roteiro) e Allan Alex, Alex Genaro, Eduardo Schloesser, Hugo Canuto e Naara Nascimento (arte)
[Independente, 2019]

Para adquirir a obra, entre em contato com o autor.

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