Crítica – Livro: O Corpo Em Que Nasci, de Guadalupe Nettel

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Imagem: Divulgação

Livro da mexicana Guadalupe Nettel traz drama latino e feminino sobre o corpo

Por Renata Arruda

01. A mexicana Guadalupe Nettel não poderia ter escolhido melhor título à sua autobiografia ficcional: O Corpo Em Que Nasci, lançado no final de 2013, traz o relato cru e sóbrio sobre a infância e a adolescência de uma mulher que passou os primeiros anos de sua vida marcada por um problema em seu olho que a obrigava a usar um tampão no olho bom com o objetivo de desenvolver o doente. Olhando a vida em borrões até o cair da noite, quando podia tirar o curativo da vista boa, a menina pequena teve que crescer sendo o alvo da estranheza de desconhecidos e chacotas dos amigos da escola. Aprendeu a se refugiar na literatura.

02. Seus contos quando criança eram aventuras protagonizadas pelos mesmo colegas que enxergava como algozes, alguns deles sofrendo mortes trágicas. Era sua maneira de se defender das provocações e esperando enfrentar represálias, se surpreendeu com o efeito contrário: os colegas ficaram emocionados e passaram a pedir para serem incluídos em seus contos. “Assim foi como pouco a pouco eu conquistei um lugar na escola. Não tinha deixado de ser marginal, mas essa marginalidade já não era opressiva.” (p.22)

03. Crescendo durante os anos 1970, a narradora cresce em um ambiente comunista e liberal, criada em um bairro de classe média da Cidade do México por pais que viviam intensamente as tendências do seu tempo e introduziam precocemente temas adultos à vida dos filhos. Uma das suas lembranças é ter visto os pais de duas irmãs, amigas de sua infância, transando na cozinha de casa – o que para todos naquela família era bastante natural; para eles, deveriam ceder aos impulsos do sexo no local e hora que desejassem. Já adulta, a observação que faz é cáustica: “não me estranharia descobrir que uma delas agora se encontra internada em uma clínica psiquiátrica e tampouco que outra tenha virado uma safada” (p.31).

04. Uma das maneiras que sua mãe encontrou para abordar temas como menstruação e gravidez foi adaptar clássicos infantis – a versão da história da Bela Adormecida que Guadalupe reproduz é memorável. Curiosa, a menina passou a querer saber mais sobre reprodução e sexo, ao que recebeu a resposta de que nem todo sexo é feito com intenções reprodutivas mas também por prazer, “como comer chocolates”. “Comer chocolates! Com uma resposta assim, o mais provável era que uma menina desejasse fechar-se esta manhã mesmo no banheiro do colégio com o primeiro homem que encontrasse em seu caminho. Por que não lhes ocorreu responder, doutora Sazlavski, que as relações sexuais se têm por amor e que são uma forma alternativa de demonstrá-lo? Talvez teria sido um pouco mais preciso e menos inquietante, não lhe parece?” (p.28). Com a mesma coragem e espírito desafiador que já demonstrara ao escrever seus contos, a narradora resolve criar um jornal mural e logo na primeira edição aborda as questões reprodutivas – que não vem a ser bem aceitas pelos pais mais conservadores de seus colegas.

05. Durante o mesmo período a narradora experimenta mais duas descobertas a respeito do corpo (seu e das mulheres em geral): descobre por acaso os prazeres da masturbação (que, intuía, devia ser praticada sozinha) ao descer o corrimão da escada do prédio, e ainda toma conhecimento precocemente dos abusos sexuais sofridos por uma vizinha, deduzindo que além de prazer, o sexo “também poderia ser a maneira de machucar de forma muito profunda e definitiva a outra pessoa”. Guadalupe testemunha as mudanças ocorridas no modo de ser e se vestir da menina, cuja família acaba se mudando para longe depois de algum tempo.

06. Em determinado momento os pais resolvem adotar o casamento aberto, em voga na época, baseados em duvidosas analogias com o capitalismo e a propriedade privada. Guadalupe e Lucas, seu irmão, passam a ver entrar e sair de casa vários “amigos” dos pais, de quem jamais voltam a ouvir falar. Fica convicta de que este foi o motivo para o fim do relacionamento. Vivendo no que passa a chamar de dois “territórios” distintos, se divide entre a vida amena com o pai e o ambiente controlado da mãe, até ver o pai partir para os Estados Unidos e ficar muito tempo sem saber seu paradeiro. A mãe resolve ir estudar na França e deixa os filhos com a avó durante os meses em que se assenta no país estrangeiro. Com a avó, a então pré-adolescente volta no tempo: passa a conhecer os preconceitos de gênero, as ideias antiquadas de que é papel da mulher servir, limpar, se comportar e até mesmo suas roupas sofrem a intervenção dos atrasos da mentalidade da avó.

07. Com a ausência dos pais e a presença tirana da avó, Guadalupe sente-se cada vez mais introvertida e triste, deixando até de escrever. Refugia-se na leitura escondida da biblioteca da mãe, no futebol que joga com os vizinhos na quadra e na vizinha Ximena com quem não troca uma palavra, mas que lhe oferece sensação de apoio quando as duas se olham tristes pelas suas janelas ou quando Guadalupe a observa pintar.

08. Aqui, a narradora vivencia uma experiência traumática, que mais uma vez se relaciona ao corpo: um dia, sua amiga Ximena não está na janela. Vendo fogo, Guadalupe corre pedindo para a vó ligar para os bombeiros e os acontecimentos a seguir são trágicos: Ximena nunca mais irá aparecer na janela para compactuarem da solidão – a menina, esquizofrênica, acaba se suicidando incendiando o próprio corpo.

09. Passando pela puberdade e sem a presença dos pais, Guadalupe fica ainda mais taciturna e canaliza toda a sua energia para o futebol, onde sente-se viva. Mas até esta atividade fica ameaçada para ela quando seus seios começam a crescer: sendo a única jogadora em um grupo de meninos, começa a sentir na pele a responsabilidade quando passa a perceber a sensibilidade nos mamilos ao tentar matar uma bola no peito. “Senti medo”, diz a narradora, “se isso acontecesse no meio de um jogo oficial, de imediato começariam a chover as vaias, coisas como ‘Tetas, fora de campo!’, que já tinha escutado em outras ocasiões, sem nenhum outro motivo a não ser minha presença” (p.94).

10. Com gosto pela literatura, entre vários autores a menina descobre Kafka e seu A Metamorfose e a comparação com o inseto gigante é inevitável: Guadalupe passa a se ver como uma espécie de Gregor Samsa, uma coincidência – que no relato funciona como uma rima textual – com o apelido de “baratinha” que sua mãe a chamava quando pequena. Talvez aqui seja o momento em que o tema da identidade e da busca em se sentir confortável dentro do próprio corpo seja melhor sintetizado. Ao me deparar com a citação a Samsa não pude deixar de soltar uma risada de compreensão: a despeito das intenções originais de seu criador, Gregor Samsa é um dos personagens que melhor antecipa o sentimento de toda uma geração, dos marginalizados àqueles que se sentem mais uma peça de xadrez. A passagem é bela:

“Me identificava por completo com o personagem d’A metamorfose, a quem ocorreu algo semelhante a minha história. Eu também tinha me levantado uma manhã com uma vida diferente, um corpo diferente e sem saber muito bem no que tinha me convertido. Em nenhum lugar do relato se diz exatamente que inseto era Gregor Samsa, mas eu presumi muito rápido que se tratava de uma barata. Ele havia se convertido em uma enquanto eu o era por decreto materno, senão desde meu nascimento. (…)
Minha leitura d’A metamorfose foi mais confusa. Durante as primeiras páginas, não consegui saber se era uma desgraça ou uma bênção o que havia acontecido ao personagem que, como se fosse pouco, nunca demonstrava nenhum entusiasmo, tampouco dramaticidade. Como ele, eu também causava certa repulsa entre meus colegas. As crianças são muito perceptivas e distinguiam claramente o cheiro de infelicidade que exsudava meu corpo.” (p. 102-103)

11. Guadalupe passou a pesquisar sobre baratas e, se identificando com sua resistência, passou a ser ver como trilobita – o ancestral das baratas.

12. Com o retorno da mãe, muda-se com o irmão para França, onde vive um choque cultural. Vai morar em uma cidade pequena num bairro pobre e perigoso, tendo contato com os imigrantes de Portugal, África negra, Ásia, ciganos e também franceses, todos marginalizados. Ela e sua família eram os únicos latinos que conseguiu localizar. Em pouco tempo de sua chegada, uma situação deixou bem clara a diferença de vizinhança que agora encarava: se antes as escadas do prédio serviam como refúgio e descoberta do prazer, ao se deparar com uma mulher machucada, que havia apanhado do marido, Guadalupe percebe ter chegado a um ambiente bem mais hostil e distante daquele onde costumava chamar de “casa”.

13. Na nova escola, vivencia a curiosidade do outro, com uma pitada de racismo ao ser recebida com perguntas absurdas como se eles vivam em pirâmides ou se haviam se acostumado aos automóveis. Guadalupe respondia com avidez às perguntas, alimentando fantasias, chegando até a dizer que às vezes usavam elefantes como meio de transporte. Ainda, vivencia uma tentativa de estupro em um acampamento de um dos sujeitos mais perigosos da vizinhança, da qual se defende intuitivamente com violência, ganhando o respeito de todos ao redor (os mesmos que riram e não fizeram nada para impedir).

14. Da França chegou a notícia de um terremoto brutal na Cidade do México, que deixou a cidade destruída em diversos pontos e vários mortos. Foi nesta situação, de ver sua cidade natal em ruínas e sua mãe em desespero, que finalmente descobriu o motivo do desaparecimento do seu pai: estava preso.

15.  É no país estrangeiro que Guadalupe passa a ter suas primeiras experiências adultas: a primeira humilhação amorosa, a amiga que trai sua confiança, sua primeira experiência sexual. Ao ser indagada pela mãe sobre esta última, reage com fúria e é enviada de volta à Cidade do México, para estudar em um colégio de classe alta e ficar aos cuidados da avó. Em seu retorno, sente-se culturalmente chocada mais uma vez: no Liceu Franco-Mexicano da Cidade do México, 80% dos estudantes e professores eram brancos, “algo curioso em um país essencialmente indígena” (p.186); porém, nem o porteiro nem os empregados de limpeza ou do café eram. Mais uma vez a narradora se vê sendo marginalizada, após a descoberta de que ela, na verdade, era pobre. Mas dessa vez Guadalupe estava disposta a assumir sua persona de outsider e não se intimida com provocações; pelo contrário, passa até a usar um guarda-roupa bem hippie, como maneira de demonstrar seu profundo desprezo às normas sociais de seus colegas abastados.

16. Ao assumir sua identidade de outsider, Guadalupe se vê disposta a descobrir novas experiências e, vivendo de maneira mais livre na casa da avó, quase como se morasse sozinha, passa a descobrir o álcool, as drogas e as noitadas com as amigas – até ser emboscada pela mãe.

17. A sua relação com as figuras femininas de autoridade na sua vida – a avó e a mãe – são todas complicadas e turbulentas. Chegando ao fim do livro a narradora reconhece a “amargura por tudo o que poderia ter sido nossa relação e não é e nem será nunca” (p.182) ao falar sobre a mãe, que parece guardar muito rancor de sua filha por motivos nunca explicitados. Chegando ao fim da narrativa, Guadalupe Nettel passa a intercalar seu passado com relatos do presente onde expõe sua vontade de transformar sua história em livro e longe de ser dramático, a autora parece se divertir nas passagens onde sua mãe ameaça processá-la – ainda que o livro nem tenha sido escrito!

18. O livro todo tem um ponto de vista feminino não somente por se tratar de um relato autobiográfico da autora: todas as pessoas que chamam atenção de Guadalupe são mulheres vivenciando o que vivenciamos todos dias em histórias muitas vezes não contadas: o abuso sexual, o machismo, a tentativa de estupro, o suicídio, a separação, a busca pela vida melhor, a competição, a traição, as descobertas sexuais, a violência doméstica, a violência na rua, a avó que cria os netos, a autodefesa, a fila do presídio.

19. Outro destaque é que além dos autores clássicos e dos inevitáveis beatniks (uma citação de Allen Ginsberg abre o livro), são várias as vezes em que são citados autores e artistas latinos em geral, o que reforça ainda mais a importância da coleção Otra Língua, lançada em momento tão oportuno em que vários autores de língua espanhola estão sendo traduzidos. São poucos os autores hispano-americanos, principalmente entre os mais jovens, que temos a oportunidade de ler e citações dentro de um livro interessante sempre atiçam a nossa curiosidade, além de nos transmitir sensação de familiaridade (ainda que esses autores sejam o badalado Alejandro Zambra ou o Nobel García Márquez).

20. Familiaridade seria a palavra com que eu descreveria o livro de Guadalupe Nettel. Autores latinos em geral me deixam com essa sensação, talvez pela proximidade, talvez pelo contexto social semelhante, mas O Corpo Em Que Eu Nasci, por tratar das questões universais de uma típica latinoamericana de classe média se aproximou bastante da minha própria vida, deixando a boa sensação de poder se relacionar com algo do seu próprio tempo.

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O CORPO EM QUE NASCI
Guadalupe Nettel
[Editora Rocco, 224 páginas, R$34,50/ 2013]
Tradução: Ronaldo Bressane
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