Crítica: Mangá O Último Voo das Borboletas traz olhar subjetivo para a era das cortesãs do Japão

Obra da mangaká Kan Takahama explora o Nouvelle Mangá em uma trama de amor e morte no século 19

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Foto: Divulgação.
Crítica: Mangá O Último Voo das Borboletas traz olhar subjetivo para a era das cortesãs do Japão
7.5

Em meados dos anos 1800, uma cortesã de luxo se envolve com um médico estrangeiro em uma história de amor cheia de segredos e reviravoltas. A proposta do mangá O Último Voo das Borboletas, de Kan Takahama, lançado pela editora Pipoca e Nanquim no final do ano passado, traz um olhar mais aprofundado de uma narrativa já bastante explorada dentro da ficção histórica japonesa. É também uma ótima oportunidade para conhecer o trabalho de uma das autoras mais interessantes do chamado Nouvelle Mangá, tendência artística que una referências da Nouvelle Vague do cinema francês e técnicas do quadrinho franco-belga, como a linha-clara.

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Entre o fim da era Edo e início da era Meiji, o Japão passava por uma enorme transformação, com uma intensa abertura econômica e cultural, o que acirrava diferentes tensões na sociedade. É dentro deste contexto que acompanhamos Kichou, uma prostituta de alta classe (chamadas de tayu) dentro de um famoso bordel na cidade de Nagasaki. Na real, Kichou é a mais desejada entre os clientes e sua fama a coloca no topo da hierarquia em seu local de trabalho. Ela se envolve com um médico, mas na verdade possui um amor secreto que se encontra à beira da morte.

A literatura e o cinema está cheio de narrativas sobre as cortesãs japonesas (cujo termo em japonês mais apropriado é “yuujo”) e todas envolvem romances proibidos e reviravoltas, o que não é muito diferente desta trama de Takahama. Mas há inúmeros diferenciais que fazem essa obra tão especial. A começar pelo interesse em investigar questões mais subjetivas da vida dessas mulheres. Há diversos momentos de reflexões profundas sobre aquela situação, que vão desde noções mais práticas sobre qualidade de vida, violência, dinheiro, mas também sobre a dificuldade em sobrepujar o sistema, se libertar daquele ambiente. A noção de que a prostituição desse período era tanto um trabalho quanto uma identidade torna tudo ainda mais complexo.

Takahama tenta dar conta de diferentes pontos de vista sobre as yuujo através de uma gama diversificada de personagens. Com isso temos acesso a várias realidades que convergem para aquele mesmo ponto, no bordel, porém com abordagens variadas. A começar pelas mulheres que trabalham ali, como a pequena Tamao, uma menina de oito anos que é preparada para adentrar na profissão e a Tamagiku Nê-San, que vive no isolamento após contrair sífilis. No entanto, ainda que as histórias paralelas sejam interessantes, sua presença na trama e o tratamento dado a elas é bastante superficial, o que causa uma quebra de expectativa de algo que poderia ser melhor explorado.

Já os personagens masculinos, que orbitam o bordel, vivem o desafio de desconstruir tradições patriarcais ao mesmo tempo em que vivenciam uma decadência desse modo de vida. Todos são empobrecidos, inseguros e emocionalmente dependentes. É uma abordagem narrativa interessante, mas os arquétipos são rasos, alguns até caricatos (como o irmão do amante secreto de Kaichu).

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A autora consegue dar conta da ambientação pesada desse período através de uma narrativa bem construída que busca costurar referências históricas com o desenrolar da trama. A edição brasileira traz ainda um ótimo posfácio para contextualização e notas que explicam bastante sobre esse momento do Japão.

Mas talvez o mais importante deste mangá seja a proposta original da autora em explorar o Nouvelle Mangá, o que a diferencia bastante do estilo geralmente visto em mangás em geral. Isso dá uma oportunidade interessante dos leitores brasileiros em ampliar o leque estético do mangá, que é um território riquíssimo dentro da linguagem dos quadrinhos. Aqui há uma maior busca pela interiorização dos personagens e a narrativa se apoia na subjetividade dos personagens e menos nos acontecimentos, na ação. O desenho de Takahama também é diferente, tanto nos enquadramentos quanto na representação dos personagens, bastante influenciado pelo quadrinho europeu.

A obra é repleta de boas descobertas e é legal ter contato com uma autora de mangá com um trabalho tão novo e interessante chegando ao mercado.

O ÚLTIMO VOO DAS BORBOLETAS
Kan Takahama
[Pipoca e Nanquim, 172 páginas, R$ 44,90 / 2019]
Tradução de Drik Sada

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