Crítica: Melancolia

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O FIM DO MUNDO SEGUNDO VON TRIER
Melancolia lida com a maior de todas as certezas que temos em relação a nossa existência: um dia ela acabará

Por Alexandre Figueirôa
Da Revista O Grito!

A capacidade do cineasta dinamarquês Lars Von Trier em deixar a platéia atônita diante de seus filmes não é novidade. Quem viu, certamente deve se lembrar do “frisson” provocado por Dançando no Escuro (2000), que fazia boa parte dos espectadores sair da sala de exibição em prantos. O filme protagonizado por Bjork, confesso, não me deixou atarantado, mas em outras ocasiões devo reconhecer como fui fisgado por Von Trier e jogado no mais completo estupor.

Foi o que me aconteceu quando vi Epidemic (1988), Europa (1991), Os Idiotas (1998), a série para televisão The Kingdom II (1997), Dogville (2003), Anticristo (2009) e agora este Melancolia (2011), exibido no último Festival de Cannes, mas cuja repercussão acabou sendo ofuscada pelo qüiproquó provocado pelo próprio cineasta por conta de declarações feitas por ele durante o evento sobre o nazismo. O filme está em cartaz nos cinemas brasileiros e, no Recife, é um dos grandes êxitos de bilheteria em toda história do Cinema da Fundação.

A maestria de Von Trier na manipulação do espectador chega a ter traços de sadismo da parte dele e, claro, só é possível pela sua percepção de quanto quem está do lado de cá da tela é capaz de desenvolver uma conivência masoquista com o que assiste. Bom, não vou me afundar nestas digressões e deixo para os psicanalistas a tarefa de desvendar o segredo destas relações perigosas. Contudo, não posso deixar de comentar aqui da necessidade de quem é cinéfilo para ir ver Melancolia.

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O novo filme de Von Trier é relativamente simples. Mas, como sempre, nas entrelinhas, o cineasta nos leva a fazer o que ele espera de todos nós: deixar-nos perturbados. O tema do filme não poderia sem mais inusitado: o fim do mundo. Ele começa com estranhas imagens em câmera lentíssima, sugerindo um clima onírico e surreal de pesadelo. Seguem-se imagens do cosmos, tudo isto ao som hipnotizante do “Tristão e Isolda”, do compositor alemão Richard Wagner. Impossível, de imediato, não nos lembrarmos de outro filme que abre também com imagens cósmicas: A Árvore da Vida, de Terence Malick.

Mas se Malick usa o cosmos para justificar as divagações metafísicas, com toques de espiritualidade, suscitadas pela trama que ele vai desenvolver; em Von Trier as imagens de astros circulando no infinito é apenas um sinal claro de suas concepções sobre a vida, ou melhor, da imponderabilidade dela e daquilo que a sustenta: o universo. Para armar seu teorema niilista, porém fundado numa lucidez absoluta, o cineasta divide o filme em duas partes.

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A primeira parte, cujo título é “Justine”, mostra o casamento da personagem título. Um matrimônio cuja cerimônia, diga-se de passagem, transforma-se rapidamente num encontro de muitas tensões e agressões e que muito lembra o filme Festen (1998), de Thomas Vinterberg um dos integrantes do Dogma 85, do qual Von Trier também fazia parte. Justine, interpretada por Kirsten Dunst (prêmio de Melhor Atriz, em Cannes), por seu comportamento irascível e instável acaba pondo fim ao casamento antes mesmo da primeira noite de núpcias.

Já a segunda parte do filme intitula-se “Claire”. Claire é irmã de Justine e foi quem preparou com esmero toda a cerimônia do casamento. Vivida por Charlotte Gainsbourg, ela revolta-se com a irmã exatamente por ela não dar valor ao seu esforço e pelo desprezo que Justine demonstra pelos rituais familiares. É neste momento então que ficamos sabendo que o mundo está atravessando um grande perigo por causa da aproximação de um planeta (o Melancolia) e que o mesmo poderá se chocar com a Terra.

É a partir da segunda parte do filme que o prólogo e a primeira parte ganham um novo sentido. De uma forma completamente diferente das usuais produções (sobretudo do cinema hollywoodiano) que tratam do fim do mundo, em Melancolia, o cineasta não está interessado em governantes desesperados, planos mirabolantes de forças militares para salvar a Terra, nem em explorar imagens típicas de filmes-catástrofes com explosões e correrias ou o surgimento de um herói capaz de fazer reverter o desfecho trágico em nome do amor que sente pela família e pela pátria americana.

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O que interessa a Von Trier é o que a perspectiva de um fim trágico e inevitável capaz de destruir o planeta e tudo que vive nele, aciona no espírito humano. Na verdade ele lida com a maior de todas as certezas que temos em relação a nossa existência: um dia ela acabará. E um cataclismo cósmico, por mais inusitado que possa parecer, não é algo impossível de vir a ocorrer. E como reagiríamos diante disto?

Curiosamente, Justine que na fase inicial do filme parecia uma jovem mulher meio louca e chegada a surtos nervosos, é quem vai encarar com mais serenidade a nova situação apresentada. Enquanto isto, Claire se desespera por ver que seu filho ainda tão jovem não terá um futuro e o marido de Claire, John (Kiefer Sutherland), cuja conduta otimista durante toda a trama – a ponto de achar que o planeta não se chocará com a Terra e criticar a esposa por esta cuidar da irmã e dar cobertura ao seu comportamento instável – será o primeiro a não conseguir enfrentar o fim próximo.

A situação articulada por Von Trier pode ser lida tanto de forma direta, ou seja, a Terra será destruída e o que fazemos se não temos para onde ir? Mas também pode ser vista como uma alegoria sobre a absoluta falta de sentido em nos apegarmos aos pequenos valores da vida burguesa e aos rituais que a vida social nos impõe. Vendo Melancolia nos damos conta que o tempo é uma dimensão tão fugaz quanto nossas vidas e que o próprio fato de existirmos pode ser o resultado de circunstâncias tão especiais e conjugadas que em todo o universo apenas na Terra elas ocorreram.

Podemos também apostar em outra leitura, acoplada apenas ao próprio significado da palavra melancolia, estado afetivo caracterizado por profunda tristeza e desencanto e com o qual o espírito de Von Trier parece compartilhar a maior parte do tempo. Por mais que queiramos apagar de nosso universo íntimo a possibilidade de ficarmos melancólicos diante da constatação de nossa frágil condição, a melancolia, tal e qual o planeta em rota de colisão com a Terra imaginado por Von Trier, inesperadamente sem nenhum motivo pode cruzar a linha do horizonte e se instalar em nosso céu para sempre.

Não desejamos isto para ninguém, mas quem assistir Melancolia, certamente da próxima vez que ficar meio sorumbático, sem motivo aparente, lembrará da luminosidade bela e misteriosa que ficou impregnada na sua memória visual por obra e graça de um cineasta cujo maior prazer é nos lembrar o quanto somos humanos, demasiadamente, humanos.

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Lars Von Trier
[DIN/FRA/ALE/ITA/SUE, 2011]

NOTA: 9,5