Crítica Teatro: Walmor y Cacilda 64 – Robogolpe, da Cia. Oficina

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Fotos: Claire Jean/Divulgação/Facebook.
Fotos: Claire Jean/Divulgação/Facebook.
Fotos: Claire Jean/Divulgação/Facebook.

Teatro Oficina fala do Robocop que roubou o golpe
Peça Walmor y Cacilda associa protestos contra a ditadura com insatisfações atuais como reforma agrária e até a Copa do Mundo

Por Mateus Araújo

Era para ser uma leitura musical encenada, no dia da grande Vigília pela Liberdade que marcava os 50 anos do Golpe Militar, mas terminou virando a nova peça do Cia. Oficina Uzyna Uzona e da Universidade Antropófaga. Walmor y Cacilda 64 – Robogolpe é (mais) um desbunde com poesia, música e verve política pelo qual José Celso Martinez Corrêa e seu grupo provoca e critica um Brasil repressor, paternalista e, de certo modo, ainda estático no que diz respeito às evoluções sociais. É também um louvor a um dos grandes ícones do palco nacional, a mitológica Cacilda Becker e todos os seus contemporâneos. A peça, em cartaz na sede do grupo, em São Paulo, desde 1º de abril, mexe na ferida do País com alfinetadas, ao conhecido estilo do diretor.

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Walmor y Cacilda faz parte de uma linhagem da pesquisa para os espetáculos do Oficina sobre a vida da famosa atriz brasileira que morreu em 1969. Não é uma biografia de Cacilda Becker nem de seu marido Walmor Chagas, mas uma crônica da nossa sociedade sob o olhar do teatro. A grande macumba cênica da companhia explora o performático estilo do seu elenco, de maneira que a palavra cantada e os gestos expansivos dizem – muito bem dito – como se vivia e sentia numa época de cólera e medo.

A peça parte da leitura da carta-testamento de Getúlio Vargas. Sentado numa cadeira, no alto da Uzyna Uzona, o ator Marcelo Drummond, que dá vida ao então presidente, interpreta o anúncio da morte e a explicação à romantismo da “saída de cena” de Getúlio, com refinada ironia e excelente dicção, sublinhado pelo sotaque gaúcho do político. Daí por diante, o Oficina segue sua antropofagia, com texto rimado do próprio Zé Celso, que também assina uma trilha sonora original e inédita, com direção musical de Montorfano e Giuliano Ferrari.

O roteiro faz uma releitura da repressão, trazendo fatos como o fechamento dos teatros àquela época e a prisão da atriz Cleyde Yáconis, além do financiamento da ditadura por parte das classes de poder, das igrejas, das famílias tradicionais. Ressuscita, ainda, assuntos como reforma agrária e o acesso às universidades, associando os protestos de 50 anos atrás com as manifestações e insatisfações dos brasileiros contemporâneos. Até, claro, a Copa do Mundo entra nas críticas do espetáculo que caminha como um grande poema crítico.

Com um elenco afinadíssimo, que canta e interpreta com desenvoltura harmoniosa, o Oficina se reafirma como grupo de teatro essencialmente político. É importante, no entanto, pontuar o excelente trabalho da atriz Sylvia Prado, a personagem-título, que de tanto pertencimento à cena, tem picos de interpretação com verdade e sarcasmo, como no episódio em que Cacilda e Maria Della Costa (Juliane Elting) enfrentam o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para libertar Cleyde e reabrir todos os teatros – e, claro, conseguem.

Entre os atores da montagem há dois pernambucanos que merecem destaque: Rodrigo García e Nash Laila. Rodrigo, que brilhou no cinema recentemente vivendo a efusiva Paulete do longa-metragem Tatuagem, agora se reveza entre os papeis mais contidos. É uma outra possibilidade de ver o trabalho dele, que mesmo com pouca fala dá seu recado com convencimento. Nash, por sua vez, chega a viver uma pernambucana porta-voz das agonias do Recife dos anos 1960 – quando Gregório Bezerra sofria nas mão dos caça-comunistas.

Sem recorrer a ranços ou exageros, o teatro-protesto de Zé Celso traz também seu olhar para o paternalismo ao qual a política nacional está presa até hoje. Isso fica evidente na acertada marcação em que deixa os personagens de Getúlio e de Jango num ponto mais alto do palco, como quem espia tudo que se passa. O Oficina ainda recorre, com acerto, a projeções de imagens históricas no Brasil, contextualizando o espectador e amarrando os fatos como uma colcha cênica.

Em Walmor y Cacilda, o soldado é um grande Robocop, frio, cego e calculista, erguido sob um discurso de guerreiro e destruído pelo próprio veneno do descontrole. E o Brasil parece ser uma grande repetição de desigualdades e de politicagens que teimam em mascarar o País do samba e do axé. O espetáculo, que pode ser assistido ao vivo no site do Teatro Oficina, é, sem dúvida, uma aula de história daquelas nuas – mesmo que sem nudez – e sem tarjas.

A peça completa pode ser vista também abaixo: