Desconstruindo as narrativas hollywoodianas de gênero: o thriller El Mate

Armando El mate o filme
Foto cartaz. EL mate o film
Imagens iniciais lembram Tarantino e Cohen, mas o humor negro acaba sendo a tônica.

Thriller de suspense e ação, comédia de humor negro bilíngue em português e espanhol, El Mate (Brasil, 2017), o longa-metragem de estreia do ator e diretor Bruno Kott, engana à primeira vista. O assassino de aluguel Armando (o portenho Fábio Markoff), vive em São Paulo, a grande capital multicultural da América Latina, nossa cidade global.  O filme se inicia com Armando em casa, na garagem, onde mantém um homem russo sob custódia, enquanto aguarda um telefonema de um mandante que virá resgatar a “encomenda”, interpretado pelo diretor Mauro Baptista Vedia. Ele é surpreendido pela chegada de Fábio (Bruno Kott), um jovem evangélico que bate a sua porta para levar a palavra de Deus, e que acaba por mudar o rumo da vida da dupla.

No imaginário cinematográfico contemporâneo, a primeira cena remete a Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992), obra emblemática de Quentin Tarantino, na medida em que aborda um universo alternativo e violento, de assassinos e matadores, banalizados como pessoas comuns, em seu dia a dia. Seu diretor, o também ator e personagem Bruno Kott, que ganhou um prêmio como melhor ator coadjuvante pelo filme em Gramado no ano passado, reconhece a referência, mas diz preferir “os Irmãos Cohen”. A ideia era partir de uma cena que lembrasse uma fórmula clichê e desconstruir aos poucos a ideia de um thriller de suspense, surpreender. O roteiro é aberto, a frustração interna dos personagens é na verdade o estopim da ação,  e a estrutura narrativa lembra algumas situações a comédia de erros. Um tiro disparado por acaso é o gatilho para narrar uma história de busca de identidade e de sentido para a vida de ambos os personagens que não deveriam estar ali.

Na medida em que a trama avança, as referências estéticas e de humor se afastam de Hollywood e vão se tornar cada vez mais latino-americanas, a começar pela trilha, que na verdade não é argentina, e foi criada para o filme pelo músico e compositor brasileiro, Marcos Romera. A canção Para que tu vuelvas é cantada pela cubana Alba Sants, Estoy perdida pela espanhola Irene Atienza, e Olvidate de mi por Gustavo Filipovich. Todos eles vivem em São Paulo. Na primeira versão, exibida em Gramado, as músicas eram cumbias selecionadas por Kott em função do desenvolvimento da história. Como eles não conseguiram os direitos sobre as músicas, refizeram a trilha com canções originais. El Mate, que foi lançado no dia 31 de agosto de 2016, o dia do golpe, em Gramado, em um contexto de manifestações e repúdio ao impeachment, fecha com uma interpretação em cena do icônico tango Cambalache (1935),  de Luis César Amadorie Enrique Santos Discépolo, imortalizado por Carlos Gardel, interpretado pelo uruguaio Cesar Cantero, que Kott descobriu no You Tube, e que deixa no ar a ideia de um final em aberto, de uma história entre outras  : Que el mundo fue y será una porquería, ya lo sé/En el quinientos seis y en el dos mil también/Que siempre ha habido chorros/Maquiávelos y estafáos/Contentos y amargaos, valores y dublé/Pero que el siglo veinte es un despliegue/De maldá insolente ya no hay quien lo niegue/Vivimos revolcaos en un merengue/Y en el mismo lodo todos manoseaos.

EL MATE FILME FESTA
O thriller de ação se transforma em em festa embalada por músicas latinas.

O roteiro também é assinado pelos dois, que foram elaborando os personagens baseados em experiências anteriores, e na sua relação profissional. Kott e Markoff, atores de formação, vêm do teatro. Durante três anos, fizeram um programa de televisão No Divã do Dr. Kurtzman, com três temporadas, exibido pelo Canal Brasil, e criaram uma “escada” para se relacionarem, com palavras e chistes. O filme tem legendas para as falas do personagem argentino, que ao se relacionar com as vizinhas, interpretadas pelas divertidíssimas Carlota Joaquina e Mochele Boesche, acaba descambando naturalmente para o portunhol.

A ideia de produzir uma obra bilíngue aqui é a de provocar o público, mas sem experimentalismos, e a iniciativa não partiu de nenhuma demanda de coprodução, e sim do envolvimento do diretor com esse imaginário.  O Dr. Kurtzman do programa é interpretado por Marcoff, que já atuou nas séries 9 mm (Fox) , Passionais (Globo), Família Imperial (Futura), Magnífica 70 (HBO), e no filme O Roubo da Taça (2016, Brasil). Kott, que na trama usa o nome verdadeiro de Markoff, atuou ainda em O Jogo das Decapitações (2013), de Sergio Bianchi.

Os diálogos, repletos de alusões à infância, melancolia, conferem empatia aos dois personagens, e verossimilhança à trama. Portanto há muito improviso. Bruno faz um garoto de subúrbio que pertence a uma igreja pentecostal, e vende Bíblias. A facilidade com que ele ingressa no mundo do matador de aluguel, totalmente sádico e amoral,  o que aparentemente seria muito contraditório, se dá, como vamos perceber, por serem ambos totalmente desajustados. Nada é o que parece ser. O estranhamento inicial e um acontecimento imprevisto abrem espaço para a aproximação entre ambos, e propiciam uma cumplicidade insólita. A atmosfera híbrida do filme se inicia com algumas fórmulas consagradas de narrativa criminal, mas se consolida na verdade a partir da intensa relação de camaradagem que surge entre os dois, num clima de quase bromance – a locação era a casa de Fábio, e eles cozinhavam no set -, em que as diferenças se diluem rapidamente nos jogos de cena criados pelos atores. O orçamento é baixo, o filme custou cerca de R$ 300 mil, e foi coproduzido pelo Canal Brasil, que deve exibir o filme após sua estreia nos cinemas. As cenas eram gravadas, e depois editadas, com no máximo três tomadas por cena. O filme entra em cartaz no dia 17 de agosto.