Divas em xeque: De Carmen Miranda ao Axé

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Foto: Dr Case

DE CARMEN MIRANDA A IVETE SANGALO
Especialistas em música pop afirmam que as cantoras do axé music não merecem o status que ostentam

Por Marta Souza
Da Revista O Grito!

As primeiras cantoras a se tornarem divas no Brasil, assim como nos Estados Unidos, surgiram na famosa Era de Ouro do Rádio, que em terras brasileiras ocorreu entre as décadas de 1930 e 1950. Antes de Ivete Sangalo e Cláudia Leitte virem ao mundo e cantarem músicas com refrões fáceis de acompanhar, adicionado a elas a batida do axé, várias cantoras já se faziam divas – como a figura mais lembrada do cenário musical do começo do século 20, a luso-brasileira Carmen Miranda, além de Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Dolores Duran, Ângela Maria, Carmélia Alves, Elisete Cardoso, entre tantas outras.

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Diferentemente dos artistas de hoje, que têm a televisão e a internet ao seu favor, grande parte das cantoras de rádio foram lançadas em discos de 78 rotações com duas músicas apenas, em cada uma das faces. As divas de ontem tinham, em geral, três meios de divulgar o seu trabalho: o disco, shows em boates, cassinos e clubes, e programas de rádio. A maioria iniciou a carreira a partir dos chamados programas de calouros, como o da rádio carioca Cruzeiro do Sul, Calouros em Desfile, do locutor Ary Barroso, que estreou em 1937 e que, nos anos de 1950, foi levado para a TV Tupi.

De acordo o jornalista e crítico de música do Caderno C do Jornal do Commercio, José Teles, as cantoras da Era do Rádio eram realmente divas, endeusadas pelos fãs, viviam uma vida glamurosa e vestiam-se com classe. Não se via, por exemplo, Ângela Maria vestida à vontade na rua. Publicações como a Revista do Rádio contribuíam para alimentar mitos e eram avidamente consumidas. Algumas cantoras, como Emilinha Borba, mantinham diários na revista, contando seu dia a dia. As estrelas do rádio assemelhavam-se às estrelas de Hollywood. Com raras exceções, elas não eram vistas como comuns mortais e mantinham uma aura de distanciamento do público. Isso aumentava ainda mais a mística em torno delas.

“A coisa chegava a tal ponto, que fãs rezavam para Emilinha Borba, muitos acreditavam que ela realizava milagres. Conheci Carmélia Alves, há quatro anos, num congresso sobre forró em Sergipe. Aos 80 anos, ela se mantinha numa elegância impecável. A cada refeição estava com uma roupa diferente, de extremo bom gosto, assim como o cabelo penteado e as unhas feitas. Ela continua vivendo como na Era do Rádio”, conta Teles.

Outro fato em comum às antigas divas é que quase todas vinham de famílias pobres, extremamente carentes, e a possibilidade de ingressar no mundo do rádio, mediante os programas de calouros, resolvia dois problemas das aspirantes a estrelas: ganhar o necessário para viver, com o mínimo de decência, e afirmar a sua personalidade, tornando-se capazes de serem reconhecidas no meio da multidão.

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Garotas propaganda
Foi naquela época também que a indústria cultural começou a se consolidar. Em 1932, por autorização do governo Vargas, houve a inclusão de publicidade no rádio, que touxe a esse meio uma elevação comercial e popular. Nesse ínterim, lançou-se o primeiro jingle, uma publicidade sobre uma padaria carioca. Daí em diante, foram constantes as propagandas no rádio, cantadas inclusive pelas divas da época, processo que continuou, depois, na televisão.

“Como diz o ditado popular, a propaganda é a alma do negócio. Uma propaganda bem feita traz venda e frisa a marca na mente dos consumidores, graças a ela, a indústria cultural tem se mantido firme. E quando a marca é associada à imagem de um artista, o objetivo de vender é cada vez mais atingido”, afirma a jornalista e especialista em linguagens contemporâneas e novas tecnologias, Cristiane Ramos do Prado.

Segundo o autor dos livros Almanaque da Rádio Nacional e As Divas do Rádio Nacional, Ronaldo Conde Aguiar, não existem mais programas de calouros de qualidade no Brasil como antigamente. Portanto, o mecanismo de aparecimento de novos astros e estrelas está a cargo de empresários e de interesses econômicos, que perpassam da TV às grandes gravadoras multinacionais, onde a indústria cultural se faz presente. “Isto significa o seguinte: cria-se uma mercadoria (o cantor e a cantora), divulga-se maciçamente a mercadoria, molda-se o gosto do público e vende-se ela. O que menos importa, no caso, é que seja um bom cantor ou cantora. O que importa são as características de tais mercadorias, que nem sempre é a qualidade”, observa.

Ainda de acordo com o jornalista José Teles, há anos não surge uma grande estrela pop no país. “Cantoras como Cláudia Leitte ou Ivete Sangalo em nada se parecem com as estrelas do rádio, tampouco têm status de divas. São cantoras pop, que arrastam multidões nos carnavais fora de época. Seus fãs são formados por um contingente de pessoas que foram condicionadas a dançar uma música extremamente simples, com coreografia de aeróbica”, aponta.

Já o pesquisador Ronaldo Conde Aguiar afirma que as divas de ontem tiveram que se impor numa sociedade que, por suas características, exigia delas um esforço muito grande, diferentemente das atuais. “Elas tiveram que interagir com seu público, de escolher bem o seu repertório, gravar e fazer shows. Tornaram-se divas porque se identificaram com seus fãs. As divas de hoje são mercadorias impostas ao seu público, ou seja, são mercadorias de uma sociedade massificada. Nada é mais parecido com isso que a Ivete Sangalo e a Cláudia Leitte”.