Documentário Passagens lança um novo olhar sobre a relação entre cinema e real

Vânia Debs
A montadora Vania Debs, uma das entrevistadas. (Divulgação).

O que aconteceria se dois acadêmicos pesquisadores resolvessem fazer um filme para discutir o tema de uma pesquisa na qual eles vêm se debruçando? Uma boa resposta para essa questão é o documentário Passagens, realizado pelos professores e pesquisadores Lucia Nagib da Universidade de Reading, no Reino Unido, e Samuel Paiva, da Universidade Federal de São Carlos, de São Paulo, e que está sendo exibido na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

A relação entre cinema e real é provavelmente a questão mais central e complexa nos estudos cinematográficos. Atualmente envolvidos em um projeto sobre a intermedialidade no cinema brasileiro, Nagib e Paiva, a partir de uma seleção de filmes, observam de que forma a utilização de expressões artísticas, como música, pintura, teatro e literatura constituem uma “passagem” para o cinema abordar as realidades social e política.

Na preparação para o filme eles entrevistaram 15 cineastas, técnicos e curadores brasileiros, figuras proeminentes do que ficou conhecido como Retomada do Cinema Brasileiro, dos anos 90, que trouxe de volta à agenda a questão da identidade nacional e as questões sociais remanescentes do Brasil. O florescimento e a diversificação do cinema independente a partir desse período favoreceram não apenas uma nova abordagem da realidade, mas um uso encorajado do meio cinematográfico que reconheceu e expôs suas conexões inextricáveis com outras formas artísticas e mediais. 

O projeto Passagens propõe que o método conhecido como “intermedialidade” esteja estrategicamente preparado para lançar uma nova luz sobre as maneiras pelas quais esses filmes não apenas representaram, mas também interferiram e transformaram o mundo ao seu redor. Os estudos de caso escolhidos são oriundos de Pernambuco, e de São Paulo, cujos cineastas, embora provenientes de culturas regionais díspares, mantêm um estreito diálogo artístico, demonstrando seus valores compartilhados. em um determinado momento histórico e interconectividade em toda a geografia brasileira.

Segundo Samuel Paiva, conceitualmente, Passagens reflete o pensamento sobretudo da professora Lúcia Nagib, cujas publicações ele acompanha desde os anos 1990. “De qualquer ângulo que você assista ao filme, sempre haverá um fator que reflete o trabalho dela. Por exemplo, o interesse na geração da Retomada, realismo cinematográfico, world cinema, intermediação, assuntos sobre os quais ela tem publicações que são referências inevitáveis. 

Lúcia Nagib and Samuel Paiva
Os diretores Lucia Nagib e Samuel Paiva, diretores de Passagens: estudos na tela. (Divulgação).

Do ponto de vista estético, os realizadores recorreram à própria estética dos filmes que estavam sendo estudados, incluindo Baile Perfumado (Paulo Caldas, Lírio Ferreira, 1996), Um céu de estrelas (Tata Amaral, 1996), O invasor (Beto Brant, 2001), Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2002), Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002), Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), Amor, plástico e barulho(Renata Pinheiro, 2013), Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013), Rio Doce-CDU (Adelina Pontual, 2013), entre outros. 

Além dos diretores desses filmes, Nagib e Paiva entrevistaram também a montadora Vania Debs, o músico DJ Dolores (Helder Aragão), a curadora Ana Farache e o produtor João Vieira Jr. A equipe de produção envolveu outros pesquisadores da área a exemplo de Albert Elduque e a pernambucana Silvia Macedo. As filmagens aconteceram em Recife, São Paulo e Cambridge e contou com imagens de Francisco Baccaro, Joyce Cury, Hsin Hsieh e Kjetil Muri Skarstein.

Passagens se insere numa nova tendência dos estudos cinematográficos que é a disseminação dos seus resultados por meios audiovisuais. Para Samuel Paiva “o filme ou vídeo ensaio é uma maneira contemporânea pela qual a pesquisa pode ter um impacto maior, atingindo um público mais amplo além dos limites acadêmicos”. Publicações acadêmicas como a revista [in] Transition têm se especializado neste tipo de produção. Há também festivais dedicados à produção audiovisual acadêmica. “O grande desafio, no entanto, é expandir a circulação desses produtos em outros setores culturais, como cinemas, festivais, televisão, museus, internet. Esperamos que Passagens circulem por todos esses canais”, completa Paiva.