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"Nenhuma Dor" passeia por mais de cinco décadas de carreira de Gal. (Foto: Carol Siqueira / Divulgação)

Entrevista com Gal Costa, maior intérprete da MPB: “Bolsonaro ataca e quer banalizar a arte”

Cantora falou sobre sua carreira, o novo disco inteiramente feito com parcerias, política e o momento da cultura no Brasil hoje

São 40 discos, mais de 30 indicações para prêmios, aproximadamente 480 parcerias e registros de diversos shows em que foi aplaudida por 10, 20, 30 minutos. Nessas quase seis décadas de carreira, Gal Costa, invariavelmente, é colocada nas listas das melhores cantoras do Brasil. “Gosto de criar rupturas entre um trabalho e outro, dar saltos na minha carreira, arriscar, fazer coisas novas, trilhar novos caminhos e isso me alimenta muito”, diz ela.

Maria da Graça Costa Penna Burgos se refere a Nenhuma Dor, disco lançado em 2021 pela Biscoito Fino, com clássicos gravados pela artista ao longo da carreira agora em duetos com artistas das novas gerações. Criolo, Rubel, Rodrigo Amarante, Seu Jorge, Silva, Tim Bernardes, Zé Ibarra e Zeca Veloso; o português António Zambujo e o uruguaio Jorge Drexler são os nomes que dão voz ao álbum com a baiana. Nenhuma Dor olha para o repertório de Gal gravado entre os anos 1960 e 1970, o mais cultuado de sua carreira.

Gal marcou a história da MPB e da tropicália, alternando ainda entre o samba e o rock’n’roll em timbres exatos.  A trajetória de Gal, definida por João Gilberto (1931 – 2019) como “a maior cantora do Brasil”, foi humilde no início, cantando nas ruas de Salvador, onde ficou amiga de muitos artistas que seriam grandes nomes da música brasileira nas décadas seguintes, até depois se transformar em um ícone da música e da cultura.

Com o cantor e compositor Caetano Veloso, a então garota dividia a admiração irrestrita por João Gilberto. Veloso é o compositor majoritário na trajetória da cantora e, como não poderia ser diferente, também dominante de “Nenhuma Dor”. O canto cristalino de Gal Costa obviamente extrapola o cancioneiro de Veloso. “A sensibilidade que ele transmite em suas canções é algo único”, conta.

Predestinada, essa libriana nascida na Barra Avenida, na Bahia, em 26 de setembro de 1945, nunca estudou canto, mas com inteligência naturalmente voltada para isso, na escola do palco desenvolveu da impostação de voz ao uso do diafragma, do lado ritmo à divisão da harmonia. Gigante, trilhou um caminho lindo, com capítulos importantes.

O canto de Gal fez e (faz) história: antes de entrar no palco para defender “Divino Maravilhoso”, no Festival da Record de 1968, Gal pediu que Gilberto Gil fizesse um arranjo diferente da música. Foi assim que a adolescente que cantava Bossa Nova saiu do palco como a mulher tropicalista. Caetano, Gil, Dedé e Sandra partiram para o exílio. Gal permaneceu no Brasil e ampliou suas parcerias: Wally Salomão, Jards Macalé e Luiz Melodia. Em plena ditadura militar, o espaço mais conhecido da contracultura no Rio de Janeiro, um pedaço da praia de Ipanema, ficou conhecido como “Dunas da Gal”.

Em 1976, Maria Bethânia teve um sonho em que a turma de Salvador se reunia novamente para criar os “Doces Bárbaros”. Foi um momento único de retomada coletiva do espírito da contracultura. Passado esse momento, Gal seguiu o caminho da estética pop, que lhe permitiu alcançar um público de dimensão antes impensável.

Obaluaê, um de seus orixás, é o deus da terra, da doença, da solidão e do silêncio. O outro, Iansã, é a valente senhora dos ventos e das tempestades. É Gal total!

Já vacinada com a segunda dose contra a Covid-19, a cantora incentiva a imunização. Em casa isolada compulsoriamente por conta da pandemia, Gal curte Gabriel, seu filho adolescente, e celebra o momento atual da sua carreira, em que comemora seus 75 anos.

Nesta entrevista, com valentia, ela faz duras críticas a Jair Bolsonaro. “Ataca e quer banalizar a arte. É de uma ignorância, uma falta de consciência”. A cantora é da cepa dos artistas que se posicionam e é fa-tal!

Qual o sentimento de poder gravar e lançar um álbum em plena pandemia?

Está muito difícil para todo mundo, não é fácil o que todos estão passando, então para mim foi um respiro, um alívio poder ir ao estúdio. Deu para aliviar a dor da gente com tudo isso. E também é muito gratificante saber que esse disco pode levar um conforto, um pouco de alegria para quem gosta e se conecta com o meu trabalho.

Eu trabalho ainda porque a minha música é muito importante para a minha vitalidade.

Houve muitas limitações para a produção do disco por conta do isolamento social? Como foi a dinâmica de trabalho?

Cada um produziu sua faixa, com sua base, com os próprios arranjos e todos cantaram na minha sonoridade, no meu tom, o que me deixou muito emocionada. Quando eu comecei a ouvir o que eles iam mandando, gostei demais e fiquei muito feliz. Foi muito enriquecedor para mim.

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Capa do disco. (Foto: Biscoito Fino/Divulgação)

Como foi a seleção de repertório para esse disco? Que recorte de sua carreira você quis trazer neste trabalho?

Foi uma escolha a quatro mãos. O ponto central entre os convidados é que foram artistas influenciados pelo meu trabalho. As ideias e os convidados me foram trazidos pelo Marcus Preto e juntos íamos ouvindo cada uma. Eu já conhecia o trabalho de todos os convidados e achei ótimo porque gostava de todos.

A ideia inicial era regravar meus sucessos que não estavam nos dois shows mais recentes: o Estratosférica e A Pele do Futuro. Alguns convidados sugeriram algumas canções também, que para eles eram muito importantes, como o “Avarandado”, que fiz como o Rodrigo Amarante, e o “Nenhuma Dor”, que fiz com o Zeca Veloso.

A arte é a identidade de um povo, dá energia e sustentação para as pessoas seguirem em frente em suas jornadas. Não tem como não ficar indignada com tudo o que ele tem feito com cultura brasileira.

Ao longo da sua carreira, você sempre soube conquistar novas gerações. Seu público vem rejuvenescendo?

Sim, desde os meus dois últimos álbuns tenho percebido isso. Percebi pelas redes sociais e pelas pessoas que têm ido aos meus shows, um público mais jovem.

Fico feliz que minha voz esteja passando por novas gerações. É comovente ver a recepção dos mais jovens, cantar para eles é forte, a energia é boa demais. Eu trabalho ainda porque a minha música é muito importante para a minha vitalidade.

Como enxerga a contribuição que você trouxe para a música brasileira?

Tudo o que eu fiz está perfeitamente inserido na minha história como cantora. Eu passei pelo rock, na época tropicalista, por música experimental, por uma estética mais eletrônica.

As canções da minha geração tinham conteúdo, de uma forma geral, mais melodia. E elas se tornam atual por conta disso. Sempre tivemos uma visão aberta pro mundo, uma visão consistente.

Nomes como Seu Jorge, Rodrigo Amarante, Tim Bernardes, Céu, entre outros intérpretes, foram influenciados pela estética do seu trabalho. Como percebe a repercussão do seu canto nessa geração da nossa música?

Eu acho importante e interessante devolver, retribuir a essa nova geração uma música deles gravada por mim. Eles bebem na minha fonte assim como eu me influenciei por outros artistas. Em todo disco que um artista lança, ele presta um serviço à cultura.

Eu tenho uma grande influência do João Gilberto e hoje, é muito legal ver que esses e tantos outros artistas se inspiram em mim e têm influência no meu canto.

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Tim Bernardes, Gal Costa e Rubel. (Foto: Carol Siqueira/Divulgação)

Como define sua relação com a música? Podemos dizer que chegar a ser algo espiritual?

Como eu disse, a música é importante para a minha vitalidade, ela me dá equilíbrio. Eu vou trabalhar até quando eu puder, quero cantar até quando Deus quiser. A música me torna melhor, em alimenta, é um presente que me fortalece.

Me sinto segura e serena quando estou no palco.

Sou muito feliz com o que eu já fiz, mas não fico satisfeita nunca. Quero fazer outras coisas muito importantes ainda, se não para todo mundo, pelo menos para as pessoas que sem conectam comigo, que me escutam.

Como era para Gal, a grande estrela da música brasileira, segurar a barra da Tropicália, com Caetano Veloso e Gilberto Gil, os mentores do movimento, no exílio em Londres?

Quando Caetano e Gil foram exilados eu fiquei aqui, porque não tinha dinheiro para ir e tinha que cuidar da minha mãe. Fiquei aqui defendendo as ideias deles, nossas, cantando e passando a mensagem. Acabei tomado esse posto de “porta-voz” do Tropicalismo.

O que Caetano Veloso representa na sua obra?

Minha identificação musical com Caetano é difícil de acontecer. Ele compõe para mim como ninguém. É, sem dúvida, um dos meus compositores preferidos. A sensibilidade que ele transmite em suas canções é algo único e espero poder cantar suas composições por muito mais tempo.

Você engrossa o coro dos artistas que pedem #ForaBolsonaro. Qual importância dos artistas se posicionarem?

O governo Bolsonaro ataca e quer banalizar a arte. É de uma ignorância, uma falta de consciência. Ele tem sido maléfico para a cultura do Brasil e eu fico chocada com a falta de informação que ele espalha. A arte é a identidade de um povo, dá energia e sustentação para as pessoas seguirem em frente em suas jornadas. Não tem como não ficar indignada com tudo o que ele tem feito com cultura brasileira.

Fa-tal, o show que cumpriu longa temporada no Teatro Teresa Raquel, no começo da década de 1970, transcendeu a área da música e se transformou num acontecimento no Rio de Janeiro, reverberando pelo país. O que você guardou na memória sobre aquele momento de sua trajetória?

Aquele dia foi tudo muito especial. A música “Vapor Barato” foi lançada ali, com o Pepeu tocando comigo. Foi muito emocionante voltar lá com o show Recanto, me emocionei demais porque foi um show simbólico, forte e emblemático.

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Foto: Reprodução / Facebook Gal Costa

A Pele do Futuro” e “Nenhuma Dor” representam uma nova fase da carreira de uma cantora que sempre se renova?

Eu tenho vontade de ousar sempre, em todos os meus álbuns. É uma coisa de ímpeto mesmo, faz parte da minha personalidade. Gosto de criar rupturas entre um trabalho e outro, dar saltos na minha carreira, arriscar, fazer coisas novas, trilhar novos caminhos e isso me alimenta muito. Sinto muito prazer em não ser igual em todos os trabalhos que lanço.

Você tem 75 anos e tem quase seis décadas de uma carreira exitosa. Há alguma coisa que você não fez e gostaria de fazer ainda?

Eu gosto muito de trabalhar e do que eu faço. A minha voz é o espelho da minha alma, e minha alma é jovem. Sou muito feliz com o que eu já fiz, mas não fico satisfeita nunca. Quero fazer outras coisas muito importantes ainda, se não para todo mundo, pelo menos para as pessoas que sem conectam comigo, que me escutam.