Entrevista com Iara Rennó: Música para a pele do tambor dançar

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O novo projeto de Iara Rennó não é um, mas dois: os álbuns Arco e Flecha (yb music/Selo Circus). Depois de disponibilizar as faixas para audição gratuita em seu site oficial, a cantora (que também é letrista, performer, compositora, e lançou no ano passado um livro de poesia pela editora Patuá) se prepara para uma apresentação no auditório do Ibirapuera com as formações originais de cada disco, a banda do Arco e o bando da Flecha, grupo formado só por mulheres e outro por homens, respectivamente. O evento marca o lançamento oficial da obra no dia 16 de setembro e reitera o papel de Iara numa cena musical povoada por mulheres empoderadas, que não têm medo de falar abertamente sobre sexo nem de reivindicar suas raízes afro-brasileiras ante uma sociedade que, nas palavras de Iara, continua “monoteísta, machista, racista e maniqueísta – é pura disputa de poder, é essa mania de querer sempre subjugar alguém, de beneficiar uns em detrimento de outros”.

Na entrevista a seguir, Iara explica como algumas das poesias do livro Língua Brasa Carne Flor viraram música e fala mais sobre as parcerias que levaram à criação deste projeto, marcado pelo caráter experimental e pela dicção erótica. Com arte de Rodrigo Sommer (que se inspirou no artista plástico Rubem Valentim), os álbuns também fazem alusão aos símbolos do candomblé e a relação com os orixás, que aparece principalmente em músicas como “Querer Cantar” e “Ciranda das Iyabás”. Mas atenção: Arco e Flecha não foram pensados para serem ouvidos com uma cartilha à mão. Se o experimentalismo acompanha a obra de Iara desde sua Macunaíma Ópera Tupi (2008), é justo dizer que seu maior mérito está em não ter feito da polifonia um chavão, um lugar-comum, uma zona de conforto em sua obra. Cada vez mais envolvida com o processo produtivo – que é, por excelência, multimídia – Iara mostra que não tem medo de pôr a mão na massa e que, mesmo depois de usufruir de várias referências no campo da cultura, ainda é capaz de fazer uma música absolutamente original, “que sopra no canto d’ouvido e faz a pele do tambor dançar”.

Leia mais a seguir:

Quando você escreveu o livro Língua Brasa Carne Flor você já pensava em transformar alguns dos poemas que estão lá em faixas do seu próximo disco, ou a ideia surgiu depois das primeiras performances?
Quando o livro ficou pronto eu não tinha musicado nenhum dos poemas. Tava me segurando pra isso não acontecer, pra não sair do foco da literatura propriamente dita. Eu estava com um copião na mão e mostrava pros amigos. Ruben Jacobina foi o primeiro a cutucar: “mas isso é uma ópera erótica!”. Daí abri minha guarda e vieram algumas músicas. Duas delas – Mama-me e Duelo – já entraram na performance que fiz no lançamento do livro e isso desencadeou o caminho para que elas e uma terceira – No Silêncio – viessem a fazer parte do álbum Arco. Posso dizer que esse ímpeto libidinoso criou uma atmosfera para o disco, sob a qual músicas como Vulva Viva (sobre poema de Alice Ruiz), Instante (com Julia Rocha e Mariá Portugal) e Corpo Selvagem (com fragmentos de texto de Eduardo Viveiros de Castro) fizeram todo o sentido.

Você faz uma mistura, uma fusão de gêneros muito inusitada. Arco parece que tem os graves, aquela batida mais pesada da trap music, enquanto Flecha tem está mais para Naná Vasconcelos, Itamar Assunção. Essa distinção é proposital?
Sim, cada disco é distinto do outro, por isso digo que são dois unos e não um duplo. Cada um tem uma banda e portanto uma linguagem sonora própria, já que as duas bandas diferem em ‘gênero’, número e grau, literalmente. A banda do Arco é um trio formado por mim na guitarra e voz, Mariá Portugal na bateria e programação e Maria Beraldo Bastos no clarone envenenado (com efeitos de pedais). Já o bando da Flecha tem Curumin (bateria), Badé (percussão), Gustavo Cabelo (guitarra), Lucas Martins (baixo), Maurício Fleury (teclados), Daniel Gralha (trompete) e Cuca Ferreira (sax barítono). A linguagem musical de cada banda vestiu melhor o repertório dividido dessa maneira: as músicas de cunho mais subjetivo, lírico e de um certo cunho psico-corporal ficaram no Arco (regido pelo princípio Yin, feminino, lunar, escuro, instintivo, objetivo); e as mais objetivas foram para o Flecha (símbolo que está mais para o Yang, solar, convexo, objetivo), que também tem influência da tradição afro-brasileira. Eu tinha a necessidade de botar essas duas linguagens para fora e um único disco não daria cabo disso, ia ficar muito esquizofrênico.

Como foi trabalhar ao lado de Curumin, do Bixiga 70 e da Ava Rocha? Quando surgiram esses convites?
Essas relações musicais foram construídas em diferentes situações de música e vida, algumas iniciadas há muitos anos. Curumin já tinha tocado comigo no projeto Macunaíma Ópera Tupi, entre os anos 2008 e 2009, e gravado no projeto Oriki (2009). Como já conhecia de perto seu talento tanto pra tocar bateria quanto pra cantar, tocar outros instrumentos e produzir, sabia que ele era o cara pra chegar nessa sonoridade do Flecha – já pensando inclusive quem seriam os outros músicos dessa combinação. Daniel Gralha (do Bixiga) fez parte da banda de Macunaíma (seguiu com ela até 2010) e também participou do Oriki, uma instalação sonora que montei no Museu Afro Brasil em 2009. Ele é um grande parça. Já sobre Cuca e Fleury, essa é a primeira vez que estamos trabalhando juntos, mas isso porque havia uma afinidade prévia. A Ava, por fim, eu conheci num show meu em São Paulo, provavelmente em 2009 ou 2010; nos encontramos de novo em 2011, no Rio, e a gente vem fazendo trabalhos juntas de lá pra cá. São parcerias de arte e de vida, ter sua voz numa canção minha é um deleite de luxo. Badé tocou comigo no primeiro festival de música que participei. Enfim, eu tenho uma satisfa imensa porque esse pessoal se instiga e se dispõe a participar dos meus trabalhos.

O clipe de "Mama-me": libertação.
O clipe de “Mama-me”: libertação.

Você tem uma relação muito forte com símbolos, arquétipos, imagens. De onde vem isso?
Os símbolos sempre me chamaram atenção. Acho que eles exercem um magnetismo sobre nós, uma apreensão do cérebro que não se dá através do raciocínio, mas através de conexões de outra ordem, semelhantes às provocadas pela absorção dos sons, das cores, das formas, da música. São quase sinestésicos! Os símbolos estão presentes em muitas culturas diferentes, assim como as mitologias e seus arquétipos, e é fascinante estudá-los porque eles nos ajudam a mergulhar na nossa própria psiquê, a encontrar nossas personas e personalidades. Os arquétipos estão evidentemente presentes nas canções para os orixás – como é o caso de Querer Cantar e Ciranda das Iyabás – e os símbolos estão espalhados por canções dos dois discos, Arco e Flecha. Eu quis deixar isso ainda mais forte na arte dos discos, e a minha principal referência foi o artista baiano Rubem Valentim, que tem como tema principal a simbologia dos orixás e que usa muitos arcos e flechas em suas pinturas. Passei essa referência para o Rodrigo Sommer, que fez uma transcriação linda e acertou em cheio no projeto gráfico.

O clipe de Mama-me teve uma recepção muito boa, no sentido de dar visibilidade à temática do corpo, da sexualidade feminina. Como você vê a representação da mulher na mídia hoje?
Acho que continua a mesma coisa do século passado, do milênio passado. A mulher costuma ser sempre a representação do que a sociedade deseja que a mulher seja e não necessariamente o que ela deseja ser. E a sociedade é monoteísta, machista, racista, maniqueísta – é pura disputa de poder, é essa mania de querer sempre subjugar alguém, de beneficiar uns em detrimento de outros. Por isso essa representação da mulher – ou do que quer que seja – torna-se opressora. Em Mama-me, a mulher está de bem com seu corpo, seja ele como for. O nu tem naturalidade, humor, crítica, sensualidade e – por que não? – expressão artística. O fato de serem várias mulheres, de formas, tamanhos, tonalidades e idades diversas, cria esse corpo único e múltiplo ao mesmo tempo. Acredito que o vídeo expresse “a mulher” de forma mais global e sincera: repercutiu positivamente porque as mulheres se vêem ali. O clipe só não agradou um ou outro hater moralista e machista.

A mulher negra ainda é fetichizada?
A mulher é fetichizada por causa da relação de poder da sociedade machista, como disse anteriormente. O seu corpo é usado na mídia pra vender produtos pros homens, quase como se o próprio corpo fosse o produto. Também a história da escravidão deixou um legado horrendo, que fez com que o corpo do negro fosse visto como objeto. Quando você junta essas duas coisas o peso é duplo, né? É mulher e negra – o fetiche que fica na cabeça do homem branco acaba sendo o de que ele possui um objeto mesmo.

Numa entrevista sua, você afirma que não podemos ver os álbuns Arco e Flecha como opostos, que na verdade eles são transgêneros, gêmeos. Você pode explicar melhor essa ideia?
Eles são gêmeos porque nasceram juntos, e transgêneros porque a música que se expressa ali não tem gênero, tanto é que a pessoa jamais vai acertar quem está tocando o quê, se é homem ou mulher, sem ler a ficha técnica. Já a relação entre os opostos aparece nos dois discos justamente porque eles são complementares, como o yin e o yang, o claro e o escuro, ou, no caso, o arco e a flecha – enquanto um impulsiona, o outro voa. Eu acho que é importante que o público conheça essas duas linguagens porque elas dizem respeito a dois lados meus, que ajudam a entender melhor a minha existência como artista. A função dos símbolos foi a de dar um significado mais aberto para esse trabalho, mais fluido, em movimento, assim como deve ser a relação entre arte e vida.