Entrevista: Elisa Gargiulo, da Dominatrix

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Elisa Gargiulo, líder da banda Dominatrix, fala sobre abuso e violência entre mulheres

Por Renata Arruda
Do Rio de Janeiro

Em 1995, Elisa Gargiulo fundou uma das bandas precursoras do movimento riot girl no Brasil: a Dominatrix, que mesmo após 17 anos, continua ativa. Como ativista feminista, Elisa comparece a atos e passeatas a favor dos direitos femininos. No último dia 21 de março, protagonizou um protesto solitário durante o Ato do Bispo, na Praça da Sé, homenageando mulheres morreram em decorrência do aborto inseguro no Brasil, o que provocou críticas colunista da revista Veja, Reinaldo Azevedo (Veja o vídeo aqui). Elisa ainda é organizadora do festival LadyFest Brasil e também dirigiu o mini-documentário 30 anos de União de Mulheres de São Paulo, onde Terezinha Gonzaga, Crimeira Almeida, Amelinha Teles, Arlene Ricodi e outras, contam parte da história do feminismo no Brasil.

Em 2006, recebeu, junto ao Coletivo Quitéria, o prêmio Projeto Inovador 2006 da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, pela oficina “Consenso Sexual Entre Jovens Lésbicas”. No último dia 04 de março, aproveitando a participação do Dominatrix no festival de queer rock Queer & Queens, Elisa leu um texto, disponível no blog Blogueiras Feministas e também no Facebook da banda, sobre violência entre mulheres e inexistência de “espaços seguros”, um assunto delicado, que costuma ser abafado tanto na comunidade lésbica quanto entre feministas em geral.

Segundo ela, o tema “surgiu do esgotamento em ver absurdos na balada e nos meus círculos de amigas e quando eu puxava o debate, as pessoas o evitavam”. E afirma que abusos sexuais também ocorrem nos relacionamentos entre mulheres e acredita que ainda exista falta de diálogo entre pais e filhos, que por pudor, dexam de alertar seus filhos sobre práticas abusivas que podem ocorrer mesmo dentro de casa ou na escola.

Em uma conversa séria, Elisa Gargiulo afirmou que mesmo sofrendo violência verbal “de gente sexista”, seu ativismo é uma retribuição às suas ancestrais “e isso é um processo de coragem pra quem nasceu mulher no Brasil”. Confira.

O que te motivou a escrever o texto?
Penso no conceito de “espaço seguro” desde 2006, quando eu fazia a oficina “Consenso Sexual Para Jovens Lésbicas” (que inclusive ganhou o prêmio Projeto Inovador de 2006 da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo). Ano passado iniciei uma nova oficina sobre violência entre mulheres. Aliado ao estudo do tema e a prática da ajuda mútua na oficina, senti essa problemática conceitual de usar o termo. Resolvi juntar essa ideia num texto e li no show. Acho importante trazer de volta a prática de ler textos em shows de punk rock e hardcore.

E como o público reagiu? Aconteceu de alguém vir conversar com você?
Sim, umas 4 ou 5 meninas vieram falar comigo, mas a reação hoje em dia é maior pela internet mesmo, meninas se identificando com partes do texto, principalmente a acontecimentos da infância.

Você pode falar mais um pouco sobre essa sua visão da violência na infância? Isso me lembra bastante a discussão sobre não bater em criança. Alguns pais dizem ter o “direito” de bater em criança teimosa. E uma vez alguém levantou a questão: então um homem tem o direito de bater na mulher “teimosa”? E você vai além, falando da violência entre as próprias mulheres.
Quando você é criança, você é criança. Não vemos o mundo como os adultos veem, as coisas basicamente podem ser divididas em sensações físicas e psicológicas “boas” “ruins”. Essa é a nossa bússola quando somos pequenas. Um abuso sexual pode não machucar muito fisicamente, mas a criança sente que tem algo estranho acontecendo. Se ela não é avisada que esse tipo de coisa não deve acontecer, ela não avisa os pais. Isso quando não sofre ameaças dos agressores. Pais e mães evitam falar sobre abuso sexual com crianças achando que isso não é coisa que se conversa com meninas pequenas.

Mas como proteger essas meninas de violência e abuso sem ao menos elaborar um método pra ensiná-las a denunciar algo errado? Pessoas leem manuais para instalar aparelhos de DVD em casa. Porque ninguém lê livro pra criar filhos e filhas? Sobre bater em crianças, existem métodos muito mais eficazes de educar. Inclusive, o processo pra quem bate é muito estressante também, leva ao sentimento de culpa, mesmo a pessoa não admitindo isso. Se você bate numa criança, ela pode crescer deixando a violência física e sexual chegar muito próxima a ela. A questão da violência entre a mulheres é um grande tabu pro feminismo brasileiro. Nos EUA já estão discutindo desde os anos 90, com pesquisas e publicações. Aqui tá todo mundo fazendo cara de paisagem. E quando surge um caso de violência entre mulheres, deflagra-se o total despreparo pro debate, fruto do medo e da preguiça.

Mas qual seria este medo?
Medo de ter amigas agressoras e não saber como agir caso alguém as denuncie.

Há um trecho no seu texto que fala: “Mulheres lésbicas, por exemplo, quando traziam seus relatos recebiam menos atenção afinal elas estavam em um relacionamento que as ouvintes diziam ser ‘mais seguro’, um ‘espaço seguro’ pra mulheres se relacionarem sem sofrer violência”…
Sim, essa parte é uma referência a construção do conceito de violência doméstica oriundo do feminismo da segunda onda, nos anos 70, principalmente nos EUA.

É que o povo quer ser revolucionário enquanto estupra mulher. E a história prova que isso é possível, infelizmente.  

Essa agressão entre mulheres também teria a ver com abuso sexual?
Sim, nos EUA pesquisas apontam uma incidência de 30% de lésbicas relatando abuso sexual. Abuso sexual incluiu ser tocada ou forçada a fazer sexo quando se está alcoolizada, só pra citar uma das dezenas de formas que o abuso sexual pode se dar entre mulheres.

Também não se comenta muito casos onde mulheres agridem os homens. Como é que você acha que o feminismo deveria começar a tratar essa questão?
O feminismo brasileiro deveria ler mais Pierre Bourdieu. A lei Maria da Penha está sendo aplicada em casos de maridos que sofrem agressões. E isso está certíssimo. Entendo da onde vem o medo de algumas feministas em não deixar que as reivindicações clássicas se pulverizem num Fla-Flu de homens contra mulheres. Mas assim que nos damos conta de violência entre mulheres ao nosso lado ou com a gente, e o debate é abafado, sentimos o mesmo mecanismo patriarcal de silêncio como cúmplice da opressão. Particularmente, nas minhas práticas feministas, eu categorizo violência como violência mesmo. A ética tem que ser o norte.

Existem casos de mulheres lésbicas que acionaram a Maria da Penha também?
Teve um caso que a lei foi aplicada em Canindé. E a mulher já tinha tomado BO da namorada antes de tentar matá-la. Também teve em Recife, em Goiás.

Interessante que às vezes elas já tem histórico.
Pois é, violência doméstica é um ciclo. Analiso que deve ter muita morte de lésbica vítima de agressão doméstica que passa pelo mesmo processo de acobertamento que os travestis. Muitas vezes a pessoa é expulsa de casa e a família nunca mais quer saber da pessoa. Ela morre assassinada pela companheira e a família não vai nem reconhecer o corpo. Nessa toada, não se registra como morte por violência doméstica, logo não temos números ainda.

Uma vez você comentou sobre o feminismo brasileiro muitas vezes partir do princípio hétero. Tirando o apoio aos direitos homossexuais, também tenho essa impressão.
Feminismo heteronormativo. Como na época do suposto estupro do BBB. Todos os textos de feministas que li faziam referência a violência sexual de forma heteronormativa. Pra mim, que estou há muito tempo estudando violência entre mulheres, parece aquela época que o povo escrevia “opção sexual” ao invés de “orientação”. Mas não tô vendo muita adesão a mudança de linguagem. Tô achando que vai ser uma luta árdua. O mais bizarro é ver gente instruída hesitando em mudar a linguagem. A impressão que eu tenho é que todo mundo tem uma amiga louca que bate em mulher e tá com medo de tomar uma posição, não é possível.

Você falando disso me lembra que existem feministas que acreditam que não se deve chamar a atenção para certas condutas femininas reprováveis com a justificativa de que isso ajudaria os detratores. Talvez seja um silêncio de quem não gosta de admitir que as mulheres também podem ser agressoras.
Sinceramente? Quem acha violência algo podre vai achar, seja perpetuada por homens, mulheres, lésbicas etc. Quem não vê problema em violência dá essa desculpa de que estão “protegendo o feminismo”. Fica menos “chato”. No fundo, são pessoas que não ficam muito enojadas com violência.

Provavelmente por ter algum traço de dominação na personalidade, acredito eu.
Pois é. A União de Mulheres de SP, uma das mais significativas organizações pro feminismo latino americano, foi fundada a por 4 mulheres que foram expulsas do PCdoB por “desviarem o foco da revolução”. No mini-documentário “30 Anos de União de Mulheres de São Paulo” elas falam disso no comecinho.

“Desviar o foco da revolução” é muito cinismo.
É que o povo quer ser revolucionário enquanto estupra mulher. E a história prova que isso é possível, infelizmente.

E na esquerda tem muito machismo. Muitas vezes o feminismo é um movimento à parte mesmo, até visto como questão menor.
É, a esquerda é o lugar perfeito pra um machista se esconder. O vermelho é a cor que melhor camufla o patriarcado.

Elisa ao lado das outras integrantes do Dominatrix (Foto: Divulgação)

Você indicou o texto “Violência entre Mulheres”, do blog Sapatômica, e ele diz algo interessante: “A própria comunidade lésbica não quer ser vista como problemática, o que dificulta ainda mais a abordagem dessa discussão e isola a vítima do coletivo.”
É por isso que eu digo que o feminismo brasileiro tem que ler mais Pierre Bourdieu. Mulheres tão sendo espancadas e essa violência tá indo pra conta do movimento de mulheres, na medida que silenciam.

No texto você diz que essa ideia de espaço seguro é uma espécie de perversão patriarcal e que reproduzimos em nossos discursos feministas. Como assim?
A ideia de ‘espaço seguro’ é uma prática perversa patriarcal porque desloca o foco de uma ação mais eficiente para o abafamento da violência. “Aqui é sua casa, não vai te acontecer nada” ou “Mas sua escola é segura, isso não pode ter te acontecido lá”. Não devemos dizer pras crianças onde ou quem é seguro, devemos falar sobre os tipos de violência, ensinar as mulheres como identificar. É mais eficiente ensinar uma menina a identificar uma situação de violência e empoderá-la para denunciar do que tentar simular um ‘espaço seguro’. Quando eu digo simular um ‘espaço seguro’, e digo na posição de alguém que fez isso por muito tempo, me refiro, entre outras coisas, aquela prática feminista de sentar em círculo e dizer “vamos aqui criar um espaço seguro”. Tá dando pra entender?

Sim, entendi. E a reflexão é pertinente, acho que a maioria não atenta mesmo pra isso. Pra finalizar, como é o seu trabalho como ativista e líder da Dominatrix, considerada a banda feminista brasileira mais importante?

Acho que são muitos os motivos dessa visibilidade, um deles é a longevidade. A banda ainda existe depois de quase 17 anos, produz música, toca ao vivo. Sinto que ela funciona como uma organização feminista no aspecto da postura política. E eu pessoalmente não paro. Sempre falo de feminismo, me arrisco o tempo todo, sofro violência verbal de gente sexista, estudo, leio e observo o que está acontecendo ao meu redor. Muita gente vem me perguntar o que acho de determinada situação já sabendo o tipo de postura que vai encontrar. Eu tô devolvendo o que minhas ancestrais fizeram por mim. Acho que, como pessoa do Dominatrix, posso dizer que a banda tem essa importância porque tem essa aura de saber do que tá falando quando o assunto é feminismo. E isso é um processo de coragem pra quem nasceu mulher no Brasil.

Veja o vídeo da música “Filhas, Mães e Irmãs” ao vivo:

Leia também: A Música Feminista das Riot Girls, por Renata Arruda (aqui)

Renata Arruda é jor­na­lista e escreve no site Scream & Yell, no por­tal Scriptus Est e na Revista Cultural Novitas. Também assina o blog Escrevedora. Leia outros textos dela na Revista O Grito!. Siga também no Twitter.