Entrevista: Neil Gaiman

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OS MONSTROS É QUE SÃO POP
Neil Gaiman reinventa a mitologia e ganha o mundo
Por Conrado Roel, especial para O Grito

flip 2008 selo“A maior parte do tempo não me preocupo se meus leitores serão afetados pelo que escrevo. A principal preocupação é colocar as palavras na ordem certa e ser sincero. Meu próximo livro (The Graveyard Book) é sobre um garotinho cuja família é assassinada, ele acaba se refugiando em um cemitério e passa a ser criado por pessoas mortas. E passa a aprender como uma pessoa morta. Então, olho pra isso e penso: vou escrever um livro que várias crianças vão ler e passarão, em algum nível, a acreditar que existem pessoas que vivem em cemitérios. O que significa que um das coisas que devo aos leitores é a responsabilidade de ser honesto com eles. No Graveyard Book as únicas pessoas perigosas são as vivas. As únicas coisas com que precisa se preocupar estão vivas. Pessoas mortas não podem nos machucar. Muitas crianças vão se sentir muito menos assustadas com isso e poderão ver os cemitério como lugares mais hospitaleiros. Portanto é bom lembrá-los que ter medo de fantasmas é um desperdício de esforço. Existam eles ou não, porque eles nunca vão machucar você”.

A fala de Gaiman falou sobre estas coisas na entrevista coletiva concedida em Paraty (RJ), durante a Festa Internacional de Literatura de Paraty (FLIP) deste ano, que ocorreu no início de julho. No encontro com a imprensa, o tom do inglês ensaiava ares de didatismo, peculiar de quem está acostumado em articular a experiência em histórias. Como usar fotos e aplicar legendas para dizer as coisas. Considerando que são imagens do subconsciente, em um de seus níveis mais obscuros, forma e função que se confundem e não fecha as questões. Por que se o humano se depara com o divino no mundo concreto, monstros inevitavelmente aparecem juntos.

Num lugar em que moral e ética tem muito mais a ver com boas intenções do que as raízes da sobrevivência e da vida em comunidade, de interpretações imprecisas, simbólicas. Psicologismos a parte, a incorporação destes elementos do conhecimento arcaico sublinha e ao mesmo tempo autoriza amores e futilidades, inconsequência e pragmatismo dos personagens de Gaiman. A estrutura narrativa remete claramente à jornada do herói. O protagonista humano – ou não -, sai de uma uma situação confortável para apaziguar algum desequilíbrio. A estrutura simples é compensada pelo deslocamento de eixo da experiência para o cidadão comum, ao invés de um predestinado, alguém auxiliado por uma dádiva, ou portador de qualquer prodígio.

Subentendendo-se, entretanto, que a salvação da humanidade é perene e a relação do homem consigo mesmo é que é transformada. Você é o herói. Então a vida segue, mas a miséria desaparece. Diluída na beleza efêmeras da vida.

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Menos vísceras; mais viscerais
Mas o fato é que as histórias de Gaiman são de também de terror. Um Arlequim vestido de losangos vermelhos e chapéu coco que retira o coração do próprio peito e o prega sangrando, na porta da casa de uma loira de uma displicência provocante. Situações que apareceram nas HQs adultas dos idos de 1980, entre toda uma geração, incluído o patriarca, Alan Moore, pai de Watchmen, enredos crias dos pós-punk, meio anárquico e isso dá pistas sobre essa estética, do homem comum amputado pela sociedade de consumo.

No arco inaugural das histórias de Sandman, personagem da DC Comics cujo universo foi completamente reinventado por ele, há duas histórias que, segundo atesta o próprio autor, são “de puro terror”. Em uma delas, intitulada “24 horas”, um maníaco de posse de uma jóia que controla os sonhos manipula um grupo de pessoas dentro de um bar, até provocar a morte de todos. Caso fosse representada nos moldes de uma HQ de ação, este enredo poderia ser desenvolvido em uma página. Em Gaiman, o sofrimento assume seu próprio tempo, destilado e amplificado em momentos de agonia. Se expande através das reações das vítimas, passa pela culpa auto-assumida no momento da dor em nome dos demônios pessoais e chega até o desvario último que personaliza cada uma delas.

Mas a exemplo do realismo fantástico, o monstro perdeu o status de protagonista das histórias e este papel foi assumido pelas pessoas comuns, com problemas comuns, ou então e até mesmo pelo lado humano do monstro. O caso é que as metáforas oferecidas pelo terror são as mesmas e a alternância para um enfoque mais humano, com menos vísceras à mostra, às tornou mais viscerais e verossímeis. Algumas peculiaridades das HQs acabaram drasticamente alteradas, como o tempo da ação, dilatado e substituído pelo tempo psicológico. A evolução destes quadrinhos reverberou na literatura de horror como um todo.

Gaiman: A melhor coisa de ser escritor é que você gasta a vida fazendo uma coisa que o resto do mundo pensa que é um desperdício de tempo

A escritura da blasfêmia deixa de ser gauche e moveu-se para fora dos limites do pecado dos homens. A purgação torna-se trivial. Afinal, nestes dias, há crime que mereça purgação semelhante a se deparar com a monstruosidade sobrenatural, ou ser vítima dela? E mais uma vez não é mera coincidência o papel das histórias em quadrinhos (HQ) nesta mudança de foco, em que o horror deixou de ser o fiel da balança na miséria humana e passou a pano de fundo de temas universais, como o amor, a busca por si mesmo, por coerência.

Nas HQs toda a vilania, torpeza, violência gratuita (etc) fazem sentido e, além de Gaiman, toda uma geração de quadrinhistas, tanto escritores quanto desenhistas, eram os realizadores mais familiarizados com o horror e, conseqüentemente, os exploradores das fronteiras do gênero.

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Sandman, o desconhecido personagem de uma grande editora oferecido a ele em 1988 como um voto de confiança, e tornou-se peça fundamental da narrativa moderna. A exploração de uma consistente história pregressa e uma ampla extensão de desdobramentos no universo gerenciado pela DC Comics. Era um personagem que se retarda um pouco no tempo de ação característico daquelas histórias, aproveitando o espaço de vida mundana e preocupações comuns onde antes só havia aventura. Monstros com crise de personalidade.

Talvez, tudo vale para não deixar nenhum psicopata com cara de lobotomizado, como era o caso de boa parte dos vilões de HQs de ação e terror. Não que outros não tivessem surtido o mesmo efeito, mas Sandman realmente está entre os melhores e já carregava o gérmen de tudo que Gaiman exploraria a partir dali. Ou seja, toneladas de referências mitologicas, entrelaçadas entre as mais diversas vertentes. E, no meio de tudo isso, o homem-comum.

Beowulf ia ser barato, engraçado, e, nove anos depois, me deparei com um filme com Angelina Jolie, Anthony Hopkins e John Malkovich

“A melhor coisa de ser escritor é que você gasta a vida fazendo uma coisa que o resto do mundo pensa que é um desperdício de tempo. Porque você se interessa por alguma coisa e ensina a si mesmo sobre tudo aquilo. E comigo acontece de esquecer boa parte das coisas e depois, quando escrevo, geralmente penso: de onde tirei tudo isso? Eu sei que sei… Mas como eu sei aquilo? Em Deuses Americanos, por exemplo, foi como uma pesquisa que eu vim fazendo em 40 anos. Eu amo mitologias, amo historias e tudo isto estava la quando comecei escrever. Uma coisa curiosa é que quando comecei a escrever falhei de certa maneira com os deuses eslavos. Eu sabia pouco sobre eles e achava que tinha muito mais. E usei isso como desculpa para procurar. Mas o que descobriu é que existe mesmo muito pouco registrado. E o que eu sabia era basicamente o que existia. O que chega a ser desapontador”, refletiu.

Rock star
A fórmula deu mesmo certo os retratos do céu e do inferno de Gaiman se reproduziram com a prolificidade de uma franquia. Até porque, tratando-se da ficção fantástica, parece ocorrer sempre uma inversão dos pólos da criação, que os escritores reféns do próprio gênero – a prova viva é a literatura fantástica latino americana, que virou uma marca. Mas Gaiman preferiu aproveitar a onda das adaptações e continuações e tirar vantagem disso. Há tempos não assina uma HQ, o que é uma pena, e depois do sucesso dos livros, Hollywood foi o caminho natural. Já emplacou uma obra sua adaptada para a telona, Stardust, dividiu o roteiro de outra, a superprodução Beowulf, e agora vai adaptar e dirigir Os Filhos de Anansy, seu último livro publicado no Brasil, com produção de Guillermo Del Toro.

“Sempre houve um problema com Hollywood, que hoje é exacerbado, mas acho que não da para pegar um ponto daquela historia e dizer que foram originais. A coisa começou pegando historias bem sucedidas da Broadway e depois dos romances. (…) Agora tem um monte de HQs, porque finalmente chegamos a um ponto em que a tecnologia permite fazer isso. Na verdade acho que é irrelevante se é indústria ou não. O importante é que seja interessante. Por exemplo, o caso de alguém como (Guillermo) Del Toro, que esta fazendo Hellboy 2 e está sendo criticado por todos, que dizem que vai ser só mais um filme de HQ. Mas o que eu sei é que ele carrega na carga dramática e faz filmes intensos e pessoais, independente de ter origem nos quadrinhos”, contou, ilustrando a própria escalada desobstruída no cinema estadunidense.

“Em 1998 escrevi um roteiro de muito baixo orçamento de Beowulf, mas que ia ser algo como um filme do Terry Gillian, estilo Monty Pithon e o Cálice Sagrado. Ia ser barato, engraçado, e, nove anos depois, me deparei com um filme com Angelina Jolie, Anthony Hopkins e John Malkovich. Tive que me adaptar a tudo isso”, ironizou.

O Brasil é onde está um dos públicos mais fiéis do inglês, tanto que foi onde a série Sandman foi reimpressa pela primeira vez. “Em 1996, em um festival de HQs, eles encenaram uma peça de Sandman. Depois houve uma sessão de perguntas e respostas, mas depois percebi que 1,5 mil pessoas vinham na minha direção. Um segurança me levantou, me passou para outro e assim me tiraram de lá”. Você se sentiu como um rock star?, lhe foi perguntado. “Não. Me senti mais como uma bola de futebol”, retrucou. “Mas esse amor pelo Brasil começou aí. Fizeram posteres maravilhosos do Sandman. Tenho um no meu banheiro ate hoje”, concluiu.

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8ª arte
Uma curiosidade sobre a repercussão no Brasil, segundo ele, é a depreciação que se faz entre as HQs quando comparadas com outros tipos de arte. “Acho estranho que as pessoas ainda perguntam esse tipo de coisa. Nos Estados Unidos e na Inglaterra esta discussão foi encerrada quando o Art Spiegelman ganhou o (prêmio) Pulitzer em 1992 por Maus. Alguem aqui pode dizer aqui que Maus é literatura de terceira categoria?”, provocou. “Uma HQ típica do Sandman tem 24 paginas e preciso de um roteiro de 10 mil palavras, descrevendo para o artista cada quadro e o que ele tem que fazer. As infos que ele pode precisar. Então, tenho 10 mil palavras o que é bem longo. E o que o leitor consegue ver quando lê o quadrinho é só a ponta do iceberg. O que tem embaixo é a carta para o artista. Que além de lhes dar informações suficientes precisa também lhes manter inspirados”.

A maneira como as histórias são introjetadas e o controle que se pode exercer ainda na criação, para direcionar a fruição do espectador, são as peças fundamentais para avaliar as cada suporte, segundo Gaiman, e refutam qualquer tentativa de instruir hierarquia. Nas HQs, a tensão se segura no intervalo entre uma e outra página. “A magia da prosa é que ela dá letras a uma pessoa e na cabeça dessa pessoa nasce um mundo. Isso é mágica. Mas uma das coisas não tenho quando escrevo um romance é me sentir completamente no controle da experiencia do seu leitor. Nos livros não tenha nenhum controle dos olhos das pessoas em uma passagem de descrição mais longa”.

“As HQs fazem uma coisa diferente. Como o cinema. E tem uma outra coisa. Que é uma coisa pequena. E é uma das poucas coisas que realmente sinto falta como um premiado escritor de prosa. Vejam bem, um escritor multi-premiado. Sinto falta de painéis de silêncio. Em que ninguém fala nada. Se você disser em um livro que alguém não disse nada, já é alguma coisa. E perde a mágica do silêncio”. O espírito multimídia é apaziguado também pela inspiração, no caso, a dele mesmo. Na maioria das vezes é o que parecer ser. Se o que vejo na minha cabeça são imagens, então a história vai ser um quadrinho. Mas se é o tom de voz é a coisa mais importante, então é provavelmente teremos um livro, um romance”.

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