Entrevista: Priscila Urpia e as ovelhas desgarradas do Bom Pastor

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Fotos: Priscila Urpia/Divulgação.

Exposição documental “Ovelhas” da jornalista Priscila Urpia esteve em cartaz durante o 11º Curta Taquary e mostra um outro olhar sobre o cotidiano das mulheres presas

“Você é de que cela?”. Foi ao ouvir essa frase que a jornalista e fotógrafa Priscila Urpia percebeu que estava no caminho certo. Após meses de pesquisa e conversas com mulheres presas na Colônia Penal Feminina do Recife, mais conhecida como “Bom Pastor”, esse foi o momento em que identificou que estava em condições de produzir o ensaio documental que viria a intitular de Ovelhas. O objetivo era embarcar no espaço do presídio para capturar momentos do cotidiano de mulheres presas, seus mundos e desafios, assim como dar voz e visibilidade às suas histórias.

O ensaio esteve recentemente em exposição na cidade de Taquaritinga do Norte, agreste pernambucano, durante o 11º Curta Taquary. A exposição foi até dia 30 de abril, e deverá seguir em itinerância por estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, além de uma passagem pelo próprio presídio. Em entrevista exclusiva, Patrícia nos contou sobre a seleção das fotos para exposição, processo de pesquisa, acessibilidade do projeto e distinção dos lugares de fala em relação às fotografadas.

Emerson da Cunha/Revista O Grito!: De um modo geral, a exposição são sobre mulheres de uma unidade prisional, na perspectiva da fotografia documental. Explica um pouco pra gente como é o projeto
Priscila Urpia: Eu fotografei apenas uma unidade prisional, que foi o “Bom Pastor”, daí o nome da exposição ser “Ovelhas”. A princípio, o propósito da exposição é realmente documentar algo que a gente vivencia hoje, uma realidade com que a gente não tem muito contato. Eu fiz [essa exposição] pensando em dar visibilidade e voz para mulheres que são invisibilizadas e silenciadas por muitos anos. Na verdade, é um recorte em relação à população carcerária feminina, porque foi só em um presídio e é uma colônia, onde elas são sumariadas, ou seja, elas não foram julgadas nem sentenciadas. Quando são, elas vão para a CPFAL [Colônia Prisional Feminina de Abreu e Lima].

Esse trabalho é fruto do meu TCC da faculdade e eu só fiz inscrever no Funcultura para aprovação. O objetivo é tentar mostrar à sociedade pessoas que a gente não consegue visualizar na nossa vida real. A gente tem uma imagem da mulher presa hoje, mas não conhece a realidade delas, de fato. A gente fala muito pouco sobre isso. A mulher presa tem uma diferença muito grande em relação ao homem preso. Quando ela cai no mundo do crime, ela perde a função geral na vida: de mãe, de esposa, de cidadã civil, ela fica desgarrada mesmo da sociedade como um todo. O homem, quando vai preso, a mulher vai visitá-lo, os filhos também, ele volta pra casa dele. A mulher presa tem uma marca para sempre. Então, por mais que algumas tenham traficado, a maior parte delas estão lá por roubos muito bobos, de um pacote de biscoito ou de uma escova de cabelo. Aquilo não vai sair. É muito difícil até para elas conseguirem trabalho e ter depois oportunidades.

São mulheres que não estão deixando para mudar depois que saírem de lá, mas estão mudando lá dentro. O maior problema a meu ver é que elas estão lá, acho que 90% são levadas pelo sexo masculino – há algumas, claro, que cometem crimes, gostam do mundo do crime, têm prazer. Mas a maior parte é levada pelo sexo masculino: é o marido que trafica, às vezes é o irmão que matou e ela esconde a morte ou algum tipo de vestígio. São mulheres que precisam ser vistas de outra forma para terem oportunidades. Sei que humanizar mulheres que cometeram crimes, que mataram ou que roubaram é difícil, mas elas estão lá com outro contexto, a partir do contexto histórico social. Elas são fruto do meio em que vivem.

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Eu imagino que você tenha feito alguma pesquisa anterior antes de fazer as fotos. Como foi esse processo de pesquisa?
Em 2014, eu fiz o ensaio “As Ovelhas”. Foi quando eu fui para a unidade mesmo e comecei a pesquisar o meu trabalho, a conhecer um pouco da realidade carcerária feminina do Recife e a tentar desenhar como seria esse ensaio. Porque eram muitos espaços e muito diversificados os tipos de mulheres: idosas, mães grávidas, as que trabalham, as que estão há muitos anos. Há muitos tipos e os espaços são variados: a cozinha, o berçário, o salão de beleza, que é fantástico lá! E, aí, comecei a pesquisar e tentar conhecer um pouco mais.

Repeti isso no ano passado para refazer as fotos. É o que chamo de “visitas de ambiência”, para elas se ambientarem comigo, na verdade. Eu vou um mês antes, sem nenhum instrumento de trabalho, sem câmera, sem papel, sem nada. Todas as sessões que fiz foram muito simples. Eu observei o comportamento, como elas se vestiam, e eu me vestia igual, para não ficar tão destoante daquela realidade. E consegui uma aceitação muito legal, porque eu me fiz parte daquele espaço através de conversas, de muita atenção. Elas são carentes de conversar; não há nenhuma nenhuma resposta da unidade porque a maior parte são agentes penitenciários. A família vai aos domingos, mas, no dia-a-dia, não tem.

Foi difícil achar livros sobre mulheres presas. Hoje, a gente consegue um pouco mais, há o livro de Dráuzio [Varella, As prisioneiras], tem outro que se chama Presos que Menstruam [de Nana Queiroz]. Na época, eu só consegui acessar um livro que era de Direito Civil, de um professor da Unicap, que tinha feito um trabalho. Mas eu falei “Poxa, o meu é jornalístico e fotográfico, não tem nada a ver”. Mas aí eu consegui desenhar um pouco do que era a unidade, a capacidade, quantos agentes, como era a sistemática de entrada e saída, a quantidade de celas, mapeando a partir da minha vivência.

Eu senti dificuldade não para entrar lá, mas para tentar ter uma resposta delas. Porque a maior parte tem uma imagem já articulada pela mídia quando vai pra lá. Às vezes, vai para jornal, impresso, rádio, blogs e portais do interior, e elas têm muito receio em relação a imagem. Falam: “Ah, não quero porque já apareci no programa do Cardinot [Programa Barra Pesada, da TV Jornal]”, “Não quero fazer isso porque tal…”. Respeitei alguns espaços e algumas perspectivas, e comecei a perceber quem topava e quem não topava. A partir do momento em que comecei a desenhar e a falar sobre o que era o trabalho, elas se interessavam.

Eu me senti um instrumento de comunicação entre elas lá dentro. Essas visitas de ambiência foram muito importantes para eu chegar. Teve um dia em que cheguei no meu ápice em que elas me confundiram com uma reeducanda: “Ei, tu é de que cela?”. Aí eu falei: “Agora, consegui chegar no meu trabalho”. São várias realidades, mas é o mesmo perfil de mulheres. Claro que há uma cela especial, para mulheres formadas, que tem mulheres instruídas, professoras, doutorandas. É uma realidade muito diversificada.

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Você teve alguma dificuldade institucional, como foi a relação com as instituições?
Eu fiz um trabalho muito de parcerias, porque eu sei que a linha do espaço de acesso é tênue. O Estado tem esse receio de denunciar o trabalho, a unidade, e eu sempre defendi que meu foco não era a unidade, nem o trabalho da Secretaria Executiva de Ressocialização, mas as mulheres. Eu fui até onde pude, até meu limite, e também respeitei muito a questão do meu espaço e eu consegui através disso. Eles não me privaram, mas eu não podia ir sozinha, por exemplo, no pavilhão, tinha que ir acompanhada de uma agente, não podia fotografar o Pavilhão, e aí tive que pedir reautorização para tal.

Eu fui muito franca e ajudou muito eu ser sincera naquilo que eu queria colher, pegar ou transcrever. Eu falava de forma muito objetiva: “Eu quero isso”, “To aqui para isso”, “Se possível fazer, ótimo; se não, paciência, vou respeitar”. Foi por isso que ganhei a confiança do secretário e fiz o projeto agora do “Ovelhas”. Acho que a gente tem que sempre arcar com a verdade, quando a gente fala o que a gente quer.

O que você priorizou nessa seleção? E por que você escolheu pelo pelo preto e branco?
Sobre a questão da seleção das fotos, eu o curador Elvio Luiz dos Santos, fotógrafo pernambucano, a gente tentou mapear de forma muito didática a realidade e a rotina delas, os espaços: as grávidas, a cozinha, os ambientes que fazem parte do dia-a-dia mesmo. De certa forma, as imagens conseguem conversar entre si. “O céu” é uma foto que eu gosto muito, porque eu não sabia como eu iria fotografar um céu quadrado, porque é o céu de que elas sempre falavam para mim: “A gente vê o céu nascer quadrado”, “O céu é quadrado”. Eu falei: “Meu Deus, onde eu vou achar esse céu quadrado?”. E aí era um retângulo que ficava no pátio e que tinha realmente esse arame farpado. São algumas características que eu via no dia-a-dia e a que eu me atinava, como, por exemplo, a pasta de encontros conjugais, que tinha uma algema em cima.

Tentei recortar de um modo geral como seria esse presídio, como elas poderiam estar inseridas nessa realidade. A escolha pelo preto e branco veio porque tem muita cor no presídio; as cores são mais neutras, mas tem muita cor, muito bege, muito rosa, muito verde, por causa das árvores. Mas o preto e branco traz uma dramaticidade para a questão, e uma realidade mais chocante da imagem mesmo em si. Eu acho que foi também para fazer uma um recorte melhor e maior na pessoa humana, nos espaços que ficam mais centralizados nas imagens; aparece mais o rosto, a fisionomia do rosto. Tem essa questão de trazer mais para esse foco.

Eu vi que você disponibilizaram e fizeram a audiodescrição das fotos. Como foi esse processo? Vocês conseguiram fazer juntos? De onde partiu a ideia da acessibilidade na disposição
Eu penso que a gente, o tempo todo, tanto no cinema, quanto na fotografia e em outras linguagens culturais, precisa dar certa importância e certo cuidado para isso, para não restringir o nosso trabalho. Torná-lo acessível é construir outras bagagens alheias. Foi muito tranquilo, porque eu escolhi as fotos e veio para a empresa que fez a audiodescrição, que foi a Entrelinhas, a gente foi conversando sobre isso, eu fui acompanhando o processo também.

Quando vi, o trabalho estava muito bonito, muito bem executado. Eu acho importante porque eu não queria limitar meu trabalho e até queria que tivesse a leitura do catálogo em braile. Gostaria que outros projetos pudessem também ter a mesma dinâmica da gente poder espalhar o nosso trabalho, de torná-lo acessível. É muito triste alguém tentar acessar um audiovisual e não conseguir entender ou enxergar. A gente precisa externar o nosso trabalho.

A maioria das mulheres presas são negras. Para você, como mulher branca classe média que encontrou, na maior parte, mulheres negras de baixa renda, como foi esse lugar seu tentando acessar esse outro lugar?
Acho que uns 80% das mulheres presas ali eram negras. É um recorte que vem da periferia mesmo. São pessoas que realmente não tiveram acesso. Eu sou muito branca e não tinha como passar invisível. A forma que eu tinha de tentar me equilibrar ou tentar me aproximar era comendo no mesmo prato, no mesmo lugar, acessando os mesmos locais. Eu não me fiz de diferente delas e acho que foi isso que me aproximou. Mas a realidade é chocante. Quando você chega, ainda espera encontrar outros perfis. São pessoas lindíssimas, inclusive, são mulheres que estão lá tentando realmente sobreviver.

Mas a questão racial pesa. Eu ia com uma calça legging, o cabelo desarrumado, mas ainda assim tinha a questão do choque da cor. Eu tentava quebrar um pouco disso, falando: “Olha, poderia ser eu que tivesse aqui, minha mãe, etc.”, e tentava aproximar esses espaços, porque é muito chocante mesmo. A maior parte são mulheres negras e que precisam de uma identificação. Elas não conseguem se pertencer, se reconhecer e acho que precisaria fazer um trabalho em cima disso, para tentar dar uma identificação ou um sentimento de pertencimento delas, do que elas são.