Especial Watchmen: Hector Lima

EU VIGIAVA OS VIGILANTES
Jogadores no tabuleiro ao pé do fim do mundo, Alan Moore desconstruiu a HQ de super-heróis e os colocou no centro dos fatos políticos dos EUA
Por Hector Lima*, especial para O Grito!

Eu tinha 10 ou 11 anos quando Watchmen, a HQ, começou a ser publicada no Brasil pela Editora Abril, e aquilo me deu um nó na cabeça. Alan Moore era o inglês velho do saco que já tinha me causado terror, nojo, espanto e alegria com o Monstro do Pântano, uma obra pós-hippie que depois de te assustar fazia tua cabeça abrir. Watchmen era o começo da minha adolescência e da dita “vida adulta” das HQs.

Cheguei a escrever pra editora querendo tirar umas dúvidas, mas como
não era uma mini[máxi]-série não haveria seção de cartas, muito menos existia Wikipedia ou FAQ nem fóruns online nem nada, só os amigos com quem compartilhar pessoalmente a estranheza de ver super-heróis como tema adentrando a idade adulta com suas crises de meia-idade, sua depressão, seu sexo triste, sua ultra-violência, suas drogas, sua ressaca, seu sangue, suas noites chuvosas, sua impotência perante o fim do mundo iminente, seu niilismo. Ah sim, e seus sobretudos. Enfim, os anos 80 encapsulados… “bicho, bateu deprê”, um personagem do Angeli diria.

Acho que era a mistura das cores do John Higgins que me causava tanta estranheza: violeta com amarelo, verde com laranja, azul com rosa – como se toda a HQ fosse iluminada por letreiros de neon, a “direção de fotografia” perfeita praquele momento. O traço de “nota de dinheiro” do Dave Gibbons era o ponto de intersecção perfeito entre o realismo formal norte-americano dos artistas clássicos de aventura com a leveza etérea e psicodélica dos fantasistas europeus. A essência de uma época capturada em papel. O timing perfeito.

Watchmen era quase que um resto da Crise nas Infinitas Terras, crossover da DC que fez com que todas as suas dimensões paralelas se juntassem em uma só, absorvendo os personagens que a editora havia comprado de outras. E o Alan Moore, o maior formalista pós-moderno de nossos tempos, agiu tal qual o relojoeiro da história [ou o acelerador que desintegrou o homem que viria a ser remontado como Doutor Manhattan].

Ele desmontou e estudou o mecanismo que fazia funcionar a HQs de super-heróis e o remontou no que é considerada a história definitiva de supers, colocando-os no centro de todos os fatos políticos relevantes da História dos EUA [como já havia feito em Miracleman]. Isso de uma forma oposta à que a Marvel e DC costumavam fazer, esses sempre evitando tocar em assuntos mais delicados. Mas Watchmen o fez sem perdão, em uma narrativa tão quadrinhesca quanto cinematográfica e literária, melhor que muita Literatura jamais almejou ser.

Essa busca pelo Realismo fez com que os personagens da Charlton [Capitão Átomo, Questão, Besouro Azul, Pacificador, Peter Cannon – Thunderbolt e Lady Fantasma, todos comprados pela DC e reaproveitados em seu universo principal] virassem nos Watchmen os ícones que conhecemos hoje, anti-heróis que matam vietcongues e também o presidente da República, que fazem rosto de bandidos virarem uma massa disforme de sangue, que estupram, que são brocha, que envelhecem e morrem, que questionam não só a natureza de seu heroísmo mas também a própria natureza Humana. E ficam divididos em ajudar a Humanidade a “chegar lá” e cagar e andar pro resto do mundo.

Dilemas apresentados, analisados, remontados e reapresentados pelo relojoeiro Moore de forma profunda através da metáfora do drama dos jogadores nesse tabuleiro ao pé do fim do mundo, mas que pro leitor é considerado “adulto” justamente pela perfumaria [crises de meia-idade, depressão, sexo triste etc.] que lembrava nos anos 80 que a qualquer momento um Reagan pode se juntar a uma Thatcher e apertar o Botão e acabar com tudo porque é o jeito mais “civilizado” e “político” de resolver os problemas que a conversa não consegue. “Bicho, que deprê”…

Essa confusão do conteúdo com a forma fez com que – graças também ao empurrão do Frank Miller – HQs “adultas” fossem conhecidas por semi-psicopatas de sobretudo esmurrando gente em becos debaixo de chuva, gritando como um drogado descontrolado. Isso me fez pegar um certo bode de Watchmen, uma vez que por causa dele havia ficado mais difícil uma HQ escapista e com mensagem positiva ser reconhecida como Arte com “A” maiúsculo, como Literatura. “Pow, Soc, Bam! Os Quadrinhos cresceram e não são mais os mesmos”. Hum-hmm, sei.

O timing perfeito acabou sendo também não só pras coisas boas – da mesma forma como Watchmen capturou o espírito de uma época na forma de uma metáfora quadrinística, a fagocitação de universos de super-heróis por parte da DC engoliu também as criações de Moore. Seu contrato – e o de Gibbons – com a editora previa que os direitos autorais ficassem com ela pelo tempo em que a HQ estivesse em catálogo [impressa, editada e disponível para a compra], o que nunca aconteceu: mais de 20 anos depois Watchmen continua em catálogo e seus autores até receberam uma compensação pelo licenciamento da obra para o cinema, mas não têm controle sobre isso. À revelia de Moore a obra passou de mão em mão por vários produtores durante décadas e conseguiu ser transposta pras telas por Zack Snyder.

O recente processo da Fox contra a Warner pela primeira opção em adaptar o gibi é fruto desse passa-passa entre estúdios e diz o Moore de uma mandinga que ele e seus deus pessoal Glycon mandaram pra ferrar quem o “fez” assinar aquele contrato na época. Mas tal qual Ozymandias, Hollywood veio trazer a solução final para sua própria sobrevivência e o que entende ser o futuro colhendo ideias agora de outras plantações e outros celeiros.

A utopia dos Quadrinhos e seus autores hoje é ter os direitos comprados por produtores da fábrica de ilusões e garantir assim uma certa independência financeira. Em teoria é muito bom, quando você pode escolher pelo menos alguma parte desse processo. Para o Moore, essa panaceia que dará à HQ segundo o inconsciente nerd a aceitação definitiva dos Quadrinhos como Arte é tão amarga e causa tantos danos como um polvo lovecraftiano interdimensional que força o mundo a parar seus conflitos atuais e seguir uma nova ordem.

Felizmente pra fãs de cinema essa batalha ele perdeu, mas ele não se importa, e nem deve: sua obra está intacta e pode ser revivida a qualquer momento, no papel em todas as suas cores de combinações que causavam estranheza àquele moleque de 11 anos que lia cada novo número noite adentro na sala de jantar, intrigado com que o futuro lhe reservava.

* Hector Lima é roteirista de HQ’s, DJ e autor do blog Goma de Mascar

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