I wanna be your boyfriend
Ilustração: Igor Alves.

Faça Uma Playlist: “I Wanna Be Your Boyfriend”

Série ficcional imagina histórias inspiradas em clássicos da música. Na estreia, um hit dos Ramones "ele se apaixonou por ela no exato instante em que, depois de uma bela golfada, ela finalmente respondeu: ‘me garanto pra caralho!"

A partir desta semana iniciaremos a série Faça Uma Playlist, que traz contos inspirados em clássicos musicais de diferentes gêneros, épocas e estilos. Os textos são assinados por Ismael Machado, roteirista e escritor paraense, radicado no Rio de Janeiro, autor do livro Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem, entre outros. As artes são de Igor Alves, ilustrador e DJ paraense, atualmente residente em Portugal. Na estreia, o autor se inspira em um clássico do The Ramones para contar uma história de amor imbuída do espírito roqueiro underground, das rodas de pogo e do vinho doce barato.

Sempre que lembravam da cena não conseguiam evitar o riso. Era uma festa num porão. Subsolo de um casarão antigo. Quinzenalmente batiam ponto naquelas noites de festas punks. O local era um tanto insalubre para os menos acostumados às coisas do underground. A fumaça dos cigarros se misturava ao cheiro de urina e cerveja que um dia sonhou em ser gelada.

Foi no momento em que uma roda de pogo se fez ao som de uma canção dos Ramones que ela, corpo miúdo e franzino, decidiu que seus coturnos iriam abrir passagem naquela celebração masculina. Coragem e determinação havia de sobra. Faltavam músculos. O corpo dela voou longe e quase ninguém percebeu.

Não é uma verdade completa. Um dos pogueiros, com cabelo igual ao de Johnny Ramone, percebeu o acidente e estendeu a mão para ajudá-la. Mas brincou: ‘Cê se garante? ’.

Ela aceitou a ajuda entre divertida e irritada. Já estava no estado de pilequinho em que se sentia maior e mais forte e podia encarar qualquer brutamontes. Ficaram frente a frente, sem saber direito o que fazer. Mas a sequência com Nirvana, Buzzcocks, Clash e Green Day deu-lhes motivos para pular e suar juntos.

Tomaram umas tantas cervejas ainda. E quando a festa acabou, seguiram com a turma toda. Ajudaram na coleta para a compra de um garrafão de vinho doce e barato. No meio da praça central da cidade, fizeram uma roda. Alguém apareceu com um sonzinho portátil. Ela precisou da ajuda dele para vomitar a mistura de vinho, cerveja e cachorro quente. Ele se apaixonou por ela no exato instante em que, depois de uma bela golfada, ela finalmente respondeu: ‘me garanto pra caralho! ’.

Outras festas vieram. Outras noites foram vencidas em bando. Suportaram juntos a humilhação da abordagem policial em fins de noite, dividiram refrigerantes e hambúrgueres e discutiram a profundidade das letras simples dos Ramones. Ela sempre lembrava que “I Wanna Live” era um dos maiores gritos de juventude que ela conhecia. “A manhã está próxima/Eu dou o que eu tenho que dar/Eu dou o que preciso para viver/Eu dou o que eu tenho que dar/é importante, se eu quiser viver/ Eu quero viver/ Eu quero viver a minha vida”, ela recitava, solene, a tradução da música. E ouvia da turma alguns gracejos sobre o que ela tinha que dar, afinal? Mas ele ouvia embevecido e lembrava de outras canções dos Ramones, como Something to believe in, ou I Don’t care. E rebatia, ‘mas é claro que ele se importava’.

Mas foi apenas quando os dois defenderam enfaticamente os Ramones de um carinha da turma que dizia ser a banda muito romântica para ser considerada punk, que ele realmente tomou a decisão.

Na festa seguinte, havia a apresentação de uma banda punk veterana no cenário. O primo dele tocava no grupo. Ele passara a semana inteira ensaiando com o pessoal. No meio do show, todos se surpreenderam quando o vocalista o chamou ao minúsculo palco. “A gente ensaiou a semana toda essa música. Agora manda o recado”.

Com o microfone na mão, ele olhou na direção dela. Anunciou: “Essa é pra ti”.

Em seguida, contou um, dois, três, e os primeiros acordes de “I Wanna be your boyfriend” preencheram o porão.

“I Wanna Be Your Boyfriend” foi lançada originalmente em 1976 no álbum homônimo dos Ramones.