Galo de Souza

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Galo de Souza FotoEmídia Felipe

A TRANSFORMAÇÃO PELO SPRAY
Dos muros pichados às galerias de arte, o artista recifense Galo comemora mudança de vida que as tintas, enfim, trouxeram

Texto e foto por Emídia Felipe
Colaboração para a Revista O Grito!, no Recife

“E aí, vamo pintar?”. Galo de Souza chama os amigos para pintar um muro como quem convida para um bar. Procura o melhor lugar, boas companhias, um meio termo de custo e benefício no que consome e faz algo que lhe dá prazer. Mas encher um muro ou uma parede de desenhos, cores e vida vai bem além de um momento de descontração. Na verdade, vai bem além do que o início da vida de Galo parecia lhe preparar. De roupas e gestos simples e boné de aba reta – uma ilustração de sua conexão com o hip-hop -, este homem de 31 anos, pai de Benjamin e marido de Luciana, tem uma história digna de registro.

Para pintar, o grafiteiro procura um lugar calmo; ou seja, que pareça não ter dono ou esteja realmente abandonado. Se tiver dono, pede permissão. O que tem ocorrido muitas vezes é o contrário: ele é convidado. Além do indiscutível talento de Galo, a arte que ele abraçou com a alma também tem tido mais reconhecimento nos últimos anos, especialmente dentro sempre renovado culto à onímoda pop art. Depois de se provar socialmente útil, revitalizando muros de escolas e envolvendo adolescentes pobres com arte, o grafite se expande no prazer estético que proporciona e já se encontra em propagandas de empresas como o Banco do Brasil, em eventos oficiais do governo paulista e em castelos escoceses.

Mas os motivos nem sempre são tão nobres. Há quem se aproveita do respeito que os grafiteiros desfrutam para manter os pichadores longe de suas paredes. Esse respeito vem muito da interseção entre grafiteiros e pichadores: têm origem pobre, atuam nas ruas e usam tintas para se expressar. No caso de Galo, porém, essa relação é mais profunda, visceral. Acomodado no sofá de sua casa, que – obviamente – tem cores fortes e grafites na fachada -, Galo debulhou muitos trechos de sua vida. “Mas minha arte tem que aparecer mais do que eu”.

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Antes, procurava um lugar tranquilo pra pintar. Hoje, chegam os convites (Divulgação)

Recifense, ele cresceu entre as áreas periféricas de Piedade (Região Metropolitana do Recife), Várzea e Roda de Fogo (periferia da capital). No começo, grafite era qualquer coisa de um mundo que ele não conhecia. Galo quase nasceu pichador, começou aos nove anos. Baile funk, shopping, pichação. Por muitos outros anos, o melhor divertimento era reunir-se com pichadores e deixar marcas nas ruas do Recife.

O jeito de Galo com as tintas logo lhe rendeu um lugar de destaque entre os que pichavam na sua gangue. Habilidade com o spray e agilidade para fazer tudo rápido e sair logo são características apreciadas entre quem curte pichação, o centro do mundo daquele adolescente pacífico, que assegura nunca ter se metido em confusão. “As gangues rivais me respeitavam”. É verdade que já foi devidamente fichado por policiais, mas nada de confusão de verdade ou prisão. Também já foi baleado, só que em um assalto a sua casa, quando o pai também se feriu.

“Gentileza gera gentileza”, apontam um dos textos de apresentação do blog do grafiteiro e também o modo calmo de Galo falar. Aparentemente, a personalidade pacífica de José Cordeiro de Melo Neto (seu nome real), o mais velho de sete filhos, o ajudou a manter sua integridade física para a evolução que o destino lhe preparava. A mudança começou devagar, quando teve os primeiros contatos com a cultura do hip-hop e com as importantes aulas gratuitas de arte, música e coral na Escola de Artes João Pernambuco. Foi também nessa conturbada época da adolescência que ele viu o grafite pela primeira vez, nas páginas da Revista Veja. “Eu pensava que fazia grafite”, conta.

Esse contato pode ser considerado como o silencioso estopim na aproximação de Galo com o grafite. Ele começou a procurar e observar grafiteiros e a aprender sozinho. O hip-hop iniciou um processo de politização que mais tarde serviria de base para muitas ações de Galo. Chegou também a se aproximar de uma igreja evangélica e a ficar um ano sem pichar. A saudade o levou de volta à adrenalina da pichação, mas “não com a força de antes”. Continua acreditando em Deus, mas hoje não tem religião. Resolveu entrar em uma banda de rap – foi uma época de muita “chapação”. Enquanto isso, matava a escola regular à míngua, o que deixou sérias lacunas no domínio da língua portuguesa – uma dificuldade que hoje fica ofuscada pela delicadeza das pinturas. Teve a própria banda, a Combate Permanente, e começou a pintar camisas que lhe renderam um bom dinheiro (muito necessário já que de casa não podiam lhe dar nenhum).

A movimentada inquietação da juventude de Galo quase o levaram a São Paulo. “Só não fui porque a politização do hip hop foi mais forte”. Então ele providenciou uma espécie de retiro: uma viagem de um mês para Aracaju, onde leu ideias libertárias e teve o insight que levou à criação do Êxito D’ Rua, um coletivo de gente disposta a mudar a realidade das comunidades mais pobres através principalmente da arte. A ideia virou um movimento que já tem 10 anos e centenas de ações, entre elas conscientização política, oficinas de arte, gravação de discos, mutirões de grafite e publicação da revista Salve S/A. Atualmente, a relação grafite vs. pichação é uma polêmica que ele prefere deixar fora da mídia e dentro de um encontro face-a-face, mas confessa, com a mesma tranquilidade que contou toda a sublevação da sua juventude, que, se seu filho quisesse ser pichador, ele só diria: “Tome cuidado”. Se vai ser pichador ou grafiteiro, só o futuro mostrará. O que o presente mostra é uma criança saudável de dois anos e meio que, como muitas, risca as paredes de casa com giz de cera.

Toda a agitação de espírito do tranquilo Galo fez amadurecer ele e sua arte. Ao passo que a percepção do grafite pelo mundo também ganhou mais experiência. Hoje Galo roda o estado, viaja para outros pontos do país, ensinando e pintando, e seu trabalho já apareceu até fora do Brasil. Seus grafites podem ser vistos em versões “de cativeiro”, em quadros, dentro de galerias – ou em suas paredes, como fez o Espaço Muda, no Recife. Mas é mesmo nas ruas, no calor do improviso e na amplidão dos espaços, que ele se expressa e que quer ficar. Cuidando para que seu trabalho apareça mais do que ele – o que é natural vir de alguém que começou na clandestinidade de quem é caracterizado como um criminoso -, Galo o espalha não só com cores e traços, mas com o conhecimento que passa e as vidas que salva através da arte. “Estou criando meu próprio movimento artístico, o criativismo”, orgulha-se, explicando o nome de sua próxima exposição, que abre no dia 28 de agosto.

Da próxima vez que você ler “arte salva vidas” acredite. Galo fez isso consigo mesmo.

OS MUITOS MUROS DE GALO