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Foto: Divulgação.

Holiday: a misoginia como violência estrutural

Estreia magistral da dinamarquesa Isabela Eklof expõe cenas fortes com recorte naturalista e traz o mundo do crime sob o ponto de vista de uma mulher

A jovem Sascha (Victoria Carmen Sonne) é uma jovem dinamarquesa que vai passar férias idílicas ao lado do namorado Michael (Lai Yde). Michael, entretanto, é um gângster que reuniu amigos numa villa em Bodrum, na Turquia. O filme Holiday, da diretora dinamarquesa Isabella Eklof, aborda a violência contra as mulheres em um universo em que a hierarquia de poder é definida pela força bruta e pela violência psicológica. A humilhação pública é essencial para que o outro reconheça a sua inferioridade. O ato de violação da mulher é, historicamente, parte constitutiva da reafirmação da sociedade patriarcal, que não reconhece a mulher como um igual, mas essa distinção, que também se aplica aos homens subalternos, serve para delimitar territórios.

Holiday nos faz pensar na bobagem romântica ventilada por filmes distópicos como Blade Runner e Ex-Machina de que o problema são os robôs e da tecnologia que nos distancia da vida real, e que a salvação para a humanidade vem da humanização, talvez num mundo apocalíptico. Não, de jeito nenhum, o inferno é aqui, a máxima latina prevalece, o homem é o lobo do homem.

A personagem principal de Holiday, Sacha, brilhantemente interpretada pela atriz Victoria Carmen Sonne, é tão robótica quanto a Ava da futurista Ex-Machina, despida de qualquer empatia com o outro. A composição da atriz em termos físicos, que lembra os conceitos da vanguarda formalista russa, são impressionantes, ela consegue transformar visualmente uma mulher elegante e bonita num ser catatônico que vagueia pelas praias do sofisticado balneário com os ombros arqueados, a cabeça para trás, causando na audiência sentimentos contraditórios, ora de piedade, ora de repulsa. Em cena, Sacha não parece ter nenhum conflito com relação ao namorado Michael (Lai Yde), e mesmo quando ele assume claramente o seu lado sádico e perverso, ela se esforça para ignorar a realidade. Nos momentos de máxima agressão, quando a dor é insuportável, seu rosto às vezes se contorce num sorriso caricatural, quase uma máscara.

O filme é a estreia da diretora dinamarquesa Isabella Eklof. A questão do abuso sexual recorrente, do estupro, fartamente alardeado pelas críticas sobre o filme, e da violência feminicida aqui não é tratado do ponto de vista da câmera subjetiva, do olhar da vítima, e aí reside o recorte magistral da diretora. É improvável sentir grande empatia pela protagonista, o que nos permite olhar com algum distanciamento a violência crua com que o filme expõe a degradação humana e a afirmação do homem pela violência perpetrada contra a mulher, reduzida a uma imagem, uma boneca inflável. No entanto, ela rejeita qualquer possibilidade de sair daquela relação que surge em seu caminho, e que na história é representada pelo amigo holandês Thomas (Thijs Romer).

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Sacha é ao mesmo tempo a vítima, mas também pode ser algoz, reproduzindo mecanicamente um comportamento aprendido de sobrevivência em que as regras para se dar bem são muito claras. Elas estão nas primeiras cenas do filme, em que a jovem chega ao aeroporto, deslumbrada com o luxo que aquela vitrine de viagens e gente endinheirada pode espelhar. A partir do momento em que o cartão de crédito dela não passa, e seu namorado gângster envia um comparsa para resgatar a moça, não há dúvidas sobre essa escolha. No carro, o comparsa diz que moças bonitas estão acostumadas a serem bem tratadas apenas por serem bonitas, mas que ela não tem de se preocupar, e diz que ela não vai precisar transar com ele, e em seguida a esbofeteia.

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Ter o poder de machucar, espancar, arrancar a vida do outro sem ter de dar satisfações garante um prazer maior do que o próprio gozo, eis a primeira lição da jovem insegura que naquele momento deixa a vida pacata atrás do balcão para ingressar no mundo do crime. Não importa o que ela tenha de fazer para chegar lá. Seu fascínio pelas esmeraldas verdes ofusca por completo qualquer possibilidade de reagir contra a barbárie. A única mulher com direito a uma fala no filme além de Sacha é a esposa de um dos amigos de Michael, Suzane. Diante de uma situação de extrema violência entre os homens da casa, Sacha pergunta a ela se deveriam fazer algo. A resposta vem rápida – de forma alguma.

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E mulheres e crianças sentam-se diante da televisão para ver um desenho animado, cena doméstica quase idílica, como se nada estivesse acontecendo. Holiday foi comparado pelos críticos a Irreversível, de Gaspar Noé, que traz a cena de estupro mais longa da história do cinema. No entanto, no filme de Noé, assim como em toda a sua obra, os personagens sempre são colocados em situações-limite, em que o processo de desumanização ocorre a partir de algum gatilho de tensão – rupturas afetivas, drogas, vingança. Eklof é mais ambiciosa nessa reflexão, e talvez por isso seja comparada com frequência ao austríaco Ulrich Seidl, pois tem a mesma percepção naturalista do comportamento humano e da sociedade. A violência é sistêmica, está em cena desde os primeiros enquadramentos.

O filme está disponível na plataforma da Imovision e integrou a seleção especial do Sundance Festival de 2018.

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