I May Destroy You: o mal estar da civilização

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I MAY DESTROY YOU
Parceria da BBC com a HBO, a minissérie I May Destroy You  – literalmente ‘eu posso te destruir’ – confirma a genialidade da atriz, roteirista e diretora negra Michaela Coel, britânica de ascendência ganesa. E também a importância do lugar de fala, termo tão em voga.

Na série, que estreou em junho, ela abandona o humor rasgado da sitcom Chewing Gum (2015) seu primeiro trabalho, baseado na sua peça teatral Chewing Gum Dreams, paródia com esquetes que giravam em torno de uma garota negra suburbana, filha de pastora, que tenta desesperadamente perder a virgindade. Coel segue trabalhando com a questão da sexualidade, mas lança um olhar mais aprofundando sobre o painel multiétnico em que se converteu o reinado de Elizabeth II nas últimas décadas, e seus protagonistas são claramente os afrodescendentes.

Desta vez, ela vai ainda mais fundo, abandonando o humor corrosivo para discutir com sensibilidade questões como estupro e violência sexual, e a ilusão do sucesso nas redes sociais.

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Em I May Destroy You o tempero autobiográfico aparece na protagonista Arabella Essiedu (Coel), jovem pobre que se converte da noite para o dia em famosa escritora com um livro sobre a geração millennial, e se sente insegura com a continuidade da sua carreira. Bella resolve a maior parte dos seus problemas em intermináveis baladas regadas a drogas, sempre ao lado de seus amigos inseparáveis, Terry (Weruche Opia) e Kwame (Paapa Essiedu).

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O tom adotado pela narrativa é mais sóbrio, o alivio cômico surge em alguns (poucos) momentos, e embora os conflitos em cena sejam sempre pesados, as performances chegam a resvalar para o poético, como na cena final do episódio 8, em que ela amanhece na praia de Ostia, na Itália, logo após ser repelida pelo seu amante italiano, o traficante Biaggio (Marouane Zotti) de forma grosseira.

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As cenas do estupro que motivam a história são meros flashbacks na mente dividida de Arabella, que após ser vítima de um golpe ao estilo de “boa noite cinderela” passa por todos os estágios de descontrole emocional de uma pessoa que sofreu abuso sexual – do apagão da memória que ela confunde com ressaca no dia seguinte, passando pela negação do fato, ao sentimento de culpa.

A forma naturalista como Bella vivencia cada uma dessas etapas faz com que ela seja capaz de performar a dor e o constrangimento de toda e qualquer mulher que passou por situações semelhantes nesse mundo moderno e virtual.

A destruição do título se justifica nessa tomada de consciência que permite perceber que não podemos confundir a possibilidade de acesso ao consumo e a liberalização de costumes como a verdadeira emancipação da mulher e, em última análise, do direito à livre expressão sexual. Nós mulheres obtivemos diversas conquistas nos últimos 50 anos, mas a fragilidade destes avanços é assustadora. Ainda não há respaldo legal e nem condições de segurança efetiva.

E afinal, qual o limite entre abuso e estupro?  Tentar retirar a camisinha antes do sexo sem que o parceiro descubra, pode ser considerado violência? Nas relações homossexuais tampouco essas questões se resolvem, elas estão presentes o tempo todo, e é Kwame quem coloca essa perspectiva em cena. Afinal, se não há consentimento, não pode existir prazer.

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Há pouco espaço para os personagens brancos nessa minissérie, protagonizada por um excelente elenco negro, mas mesmo assim vale a pena observar a atuação da personagem Theo (Harriet Webb), ex-colega de escola de Bella, que ressurge do passado para convidá-la a participar de um grupo de apoio de mulheres vítimas de abuso sexual.

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Theo carrega um fardo pesado por relações familiares tóxicas tanto na maturidade quanto na adolescência, em que é brilhantemente interpretada pela jovem atriz Gaby French. O elenco adolescente da escola de ensino médio é extremamente talentoso e equilibrado, com as eternas amigas Bella e Terry vividas por Danielle Vitalis e Lauren-joy Williams.

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Sexo, segundo Coel, mais do que magia e sedução, é respeito mútuo, compartilhar intimidade, sonhos e leituras, e, portanto, nada mais natural do que mesclar fantasias eróticas com OB, flores, hip hop italiano e pizza.

A minissérie foi baseada em uma experiência real da atriz, que neste trabalho abre mão de alguns  estereótipos que caracterizavam seu trabalho anterior, para entregar uma mulher que inicialmente se deslumbra com a possibilidade de sucesso nas redes sociais, e que aos poucos vai adquirindo uma visão mais realista sobre o mundo que nos cerca, seus valores e seu papel dentro dele.

Ao discutir sexualidade, violência e traumas a partir da visão de alguém que vem dos subúrbios, de outra etnia, a autora evidencia que algo não vai assim tão bem no austero e civilizado Reino Unido. A polícia metropolitana londrina, mesmo contando com uma dupla de mulheres especializadas em violência sexual, uma negra, a policial Funmi (Sarah Niles) e outra branca, a policial Beth (Mariah Gale), para legitimar o discurso antirracista e de isenção, nada pode fazer por ela. Mesmo sendo Bella cidadã britânica.

I May Destroy You está disponível no HBO GO.

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