Kadafi, um pop star patético

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“Kadafi num futuro próximo”, ilustração de Vipez

IMPÁVIDO DERROTADO
Com alianças internacionais arruinadas e país tomado pelos manifestantes, Muamar Kadafi segue cumprindo a promessa de que só deixará o poder morto

Por Tiago Negreiros
Colunista da Revista O Grito!, em Toronto

Não se faz mais ditador como Muamar Kadafi, desde 1969 como “líder fraternal e guia da revolução” da Líbia. Tal referência está entre aspas porque é assim, em pomposo eufemismo, que Kadafi costuma lidar com seu status. Foram ininterruptos 41 anos de poder em que o “líder fraternal” comandou de tudo, desde a perseguição sanguinária a opositores, à modernização da indústria e da agricultura da Líbia. Em nível de comparação, de tão longínqua supremacia, Kadafi seria no Brasil Emílio Garrastazu Medici, terceiro ditador brasileiro que assumira a presidência do país em 1969. A vantagem do ditador líbio é que ele chegou ao poder aos 27 anos.

Se o poder de Kadafi está ameaçado, tudo começou na Tunísia. Foi lá, neste pequeno país ao Norte da África, tomado pelo desemprego, pela pobreza e pela completa falta de perspectiva da sua jovem e letrada população, que nasceu a onda de protestos que tem deixado a ditadura de vários países sob tensão. Ao imolar o corpo com fogo, um jovem tunisiano desencadeou uma revolução no país com o claro objetivo de derrubar o ditador Ben Ali, 23 anos de poder. O ato de Mohammed Bouazizi, de 26 anos, visto como de extrema agressividade pelo mundo ocidental, foi motivado depois que a polícia tunisiana lhe confiscara a sobrevivência: uma barraca que ele costumava vender frutas. Pouco depois da morte do jovem, seu ato seguia vivo; a luta ganhava o nome de “Revolução do Jasmin” e obtivera seu primeiro sucesso com a deposição de Ben Ali. As portas para um país democrático, com todas as suas dificuldades e compasso ‘slow motion’, estavam abertas.

Kadafi também é dono de hábitos de pop star patético, que incluem roupas ridículas e posturas bizarras, como a de armar uma tenda sob olhares de 30 guarda-costas supostamente virgens toda vez que se hospeda em um país.

Bem próxido dali estava Hosni Mubarak, 30 anos de poder. O presidente egípcio a princípio não acreditava na força da sua população jovem, mas depois precisou usar a opressora força policial para conter os gritos de liberdade. Inicialmente a Revolução do Jasmin egípcia era formada basicamente por jovens que, articulados nas redes sociais como Facebook e Twitter, promoviam protestos dia após dia. Os gritos de “fora Mubarak” foram ouvidos por diversos segmentos da sociedade. Velhos, adultos, crianças, mulheres, cristãos, islâmicos, se acumularam aos milhares e fizeram vigília na praça Tahir, centro do Cairo, capital do Egito, até que Mubarak abandonasse o cargo. Ainda na véspera da renúncia, o ditador, depois de assassinar centenas de manifestantes, seguia afirmando que ficaria no poder até que as eleições fossem efetuadas. O povo insistiu e, depois de mais de duas semanas de intensa violência, Hosni Mubarak decidiu trocar a tumultuada Cairo, pelo paradisíaco balneário de Sharm el-Sheikh, no Mar Vermelho, sul do Egito. Deposto, mas ainda bilionário.

A queda de Mubarak foi decisiva para que as pessoas passassem a acreditar nas benéficas consequências de suas lutas. Vencer ditaduras é possível. Bahrain, Yêmem, Amã, Marrocos, Argélia e Arábia Saudita são alguns exemplos de como a revolta tomou força e repercussão, visto que em todos esses países acontecem protestos em prol da democracia. Porém, como em nenhum outro país, a revolução tem sido tão sanguinária quanto na Líbia. Diferente de Mubarak, que não tivera a lealdade das forças armadas, Kadafi recebeu os protestos com a complacência da caserna e muitos tiros. A quantidade de mortos desde o início das manifestações na Líbia ainda não é precisa, mas há a estimativa de que são próximos de dois mil. E não foi por falta de aviso. Saif al-Islam Kadafi, filho do ditador, decepcionou seus antigos professores da London School of Economics (LSE) quando apareceu na TV estatal líbia afirmando que os dissidentes seriam combatidos até a “última bala”.

Kadafi é pai de oito filhos e dono de uma fortuna que pode chegar a 70 bilhões de dólares, acumulada com a venda de petróleo e extensa corrupção. Os investimentos da família estão entranhados em diversas empresas do planeta, que incluem: Wienerberger (maior empresa de tijolos do mundo); o time italiano de futebol Juventus; setores de telecomunicações de diversos países africanos; do banco italiano UniCredit; da empresa Pearson (que está por trás do Financial Times) e etc. Com tanto dinheiro, o clã já chegou a proporcionar para si iguarias mais do que exóticas: shows particulares de Beyoncé, Mariah Carey, Usher e Nelly Furtado, esta última prometendo doar o cachê de 1 milhão de dólares para entidades beneficentes depois que assistiu o genocídio na Líbia.

Kadafi também é dono de hábitos de pop star patético, que incluem roupas ridículas e posturas bizarras, como a de armar uma tenda sob olhares de 30 guarda-costas supostamente virgens toda vez que se hospeda em um país. O ditador chegou a lançar um livro em 1975 chamado Livro Verde, de leitura obrigatória na Líbia. Com ideias bisonhas sobre economia e política, como classificar os plebiscitos de fraude à democracia, o texto de Kadafi contém ainda uma pincelada de sexismo: “Segundo ginecologistas, a mulher fica menstruada uma vez por mês mais ou menos, enquanto o homem, sendo um macho, não menstrua ou sofre durante o período”, diz, para justificar que, por este motivo, as atribuições da mulher são exclusivamente para cumprir a função de mãe.

Tantos anos depois as bobagens escritas por Muamar Kadafi, então com 33 anos, não mudaram muito. O número de pronunciamentos de Kadafi à nação aumenta proporcionalmente ao grau de insatisfação do seu povo. O primeiro pronunciamento foi realizado pouco tempo depois de iniciada as revoltas. O ditador aparecera por míseros 15 segundos apenas para negar que tinha fugido para a Venezuela. Daí em diante aumentaram os protestos, as mortes e o número de pronunciamentos de Kadafi. E sempre para dizer as mesmas lorotas, por hora ameaçando estancar a produção de petróleo no país, outras insultando os manifestantes e pedindo que seus aliados – devidamente bem pagos para metralhar e bombardear a população – lutem pelo regime. As bobagens chegaram ao seu apogeu quando o ditador se comparou à rainha Elizabeth, ao dizer que quem manda no país é o “povo” e ele seria uma espécie de líder simbólico. Porém, prometeu seguir lutando para permanecer como “chefe da revolução” até “morrer como um mártir”.

O genocídio e a cada vez mais prejudicada exploração de petróleo na Líbia sacudiu os interesses dos EUA e da Europa. Embora a produção líbia corresponda a pouco mais de 1% do que é produzido no planeta, o que antes era 1,2 milhão de barris por dia, despencou para um quarto desse total. A queda refletiu diretamente nos preços do barril de petróleo, que subiram no mundo todo. Preocupados, os americanos se apressaram e aplicaram sanções à Líbia antes do Conselho de Segurança (CS) da ONU submetê-las à aprovação. No dia 26 de fevereiro, o CS enfim aprovou resolução que, entre outras coisas, pede o julgamento de Kadafi, de seus familiares e membros de seu governo no Tribunal Penal Internacional (TPI). A medida foi suficiente para o ditador voltar à TV no dia 3 de março para fazer novas ameaças e realizar mais um discurso desconexo e contraditório. “Não há manifestações na Líbia. Eles [a mídia] dizem coisas que não são verdadeiras. Os líbios não gostam dos jornalistas internacionais. As notícias são sempre vagas”. Depois: “vamos lutar até a última gota de sangue contra o terrorismo na Líbia”. Diante da vigente ameaça de intervenção militar internacional na Líbia, o ditador ameaçou: “(se invadirem), haverá um banho de sangue”.

Enquanto milhares de líbios e centenas de estrangeiros abandonavam o país – 148 brasileiros deixaram a Líbia – muitos jornalistas colocavam pela primeira vez os pés na terra de Kadafi. Aliais, a terra que já pouco tinha o seu domínio. Muitos repórteres só puderam atravessar a fronteira da Líbia com o Egito após a ocupação de diversas cidades por parte dos manifestantes. O acesso da imprensa na época do pleno domínio de Kadafi era bastante restrito. Já pelos últimos dias, por onde se andava nas ruas, os relatos eram de um povo com rifles nas mãos e um sorriso no rosto. A rede de TV árabe Al Jazeera – de profunda importância na queda de Mubarak – foi recebida com festa pelo povo líbio. CNN idem. A falta de tato com o país era tão clara que, o Jornal Nacional, maior telejornal da TV Globo, cometeu uma gafe ao exibir no seu cenário a bandeira do Líbano ao invés da Líbia, que é de cor verde.

Sob escassos domínios de Kadafi resta a capital Trípoli. Cidades importantes como Benghazi, Tobruk, Misratah e outras, já estão sob tutela dos manifestantes. Se de fato o ditador cair, o desafio do povo líbio parece ser bem mais amplo que o do Egito. Embora desunida, ainda havia uma oposição egípcia. Na Líbia a articulação política começou praticamente no dia 15 de fevereiro, data que iniciaram os protestos naquele país. Faltam pessoas experientes que possam encontrar um rumo político, econômico e social, afinal, todos os antigos opositores foram assassinados pelo regime. Se os líbios mantiverem o fôlego e conseguirem derrubar a ditadura, é natural que a agressividade dê lugar a pessoas articuladas e preocupadas com o futuro do país e do seu povo. E o que é fundamental: serem escolhidos pelo voto, pelo desejo da maioria. Se vão ter sucesso, ninguém sabe, mas que tenham ao menos a oportunidade de tentar.

Tiago Negreiros é jornalista e mora em Toronto.