Maurício Angelo: Homens Comuns

Retrato de Fiódor Dostoiévski 1872 por Vassilij Grigorovič Perov.

Retrato de Fiódor Dostoiévski 1872 por Vassilij Grigorovič Perov.
Retrato de Fiódor Dostoiévski (1872), por Vassilij Grigorovič Perov.

Homens Comuns
Por Maurício Angelo

Estes dias me deparei com o lançamento recente da editora 8Inverso: as correspondências de Dostoiévski entre 1838 e 1880. Na verdade, as cartas são unilaterais. Não há contraponto. As respostas não estão presentes. As cartas traduzidas são endereçadas principalmente ao irmão, Mikhail.

A despeito destas falhas, o livro é obrigatório para os interessados pelo autor russo. Nelas, ficam expostas as entranhas de Dostoiévski. O tanto que um dos maiores gênios da literatura mundial é…um homem comum. Comum e ordinário como todos nós.

Oprimido pelo serviço militar, as doenças, a fome, a prisão, a carência, insegurança, o vício no jogo, a falta de dinheiro. Dostoiévski escreve por diversas vezes desesperado implorando por dinheiro ao pai e ao irmão. Lista todas as suas necessidades básicas, justifica o pedido por cada centavo que ele não tem para a mínima sobrevivência.

Como escritor, narra em detalhes o processo de criação das obras. Para além do perfeccionismo quase comum a todos os autores, Dostoiévski deixa claro a necessidade de fazer dinheiro com os livros. O inegável aspecto comercial. O quanto aguarda que se torne um escritor de sucesso para poder quitar as dívidas. O quanto acompanha, crítica por crítica, texto por texto, o que sai em jornais e periódicos sobre ele. Avalia os amigos. Os escritores do seu tempo: Gogol, já consagrado e Turguenev, a quem admira a princípio, tem uma série de desentendimentos e acaba se reconcicliando já no final da vida.

Definindo-se como vaidoso e ambicioso, Dostoiévski deixa entrever tudo que seria inimaginável a quem não conhece sua história, perceber. É óbvio que isto não invalida em absolutamente nada as obras que escreveu. Pelo contrário, as engrandece.

O trágico permeia o livro: além de todas as privações, o exílio na Sibéria, a prisão por conspirar contra o regime, as doenças, a epilepsia, a ordem de execução cancelada na última hora e posteriormente a crueldade do czar que manda os soldados fazerem todo o processo de execução apenas para “pregar uma peça” nos prisioneiros e anunciar a redução da pena. As mortes da esposa, da filha e do irmão no mesmo ano. O dinheiro ganho nos primeiros anos de seu reconhecimento como escritor perdido no jogo.

A inveja. A infinita insegurança. O quanto se preocupava com a opinião alheia. Um Dostoiévski frágil, atormentado, bestialmente comum. Humano. Tudo está em seus livros: cada trama, personagem, pensamento. Tudo é tirado literalmente da vida que teve.

É assustador, mesmo que óbvio, constatar estas mazelas materiais, espirituais e psicológicas, presentes em todos nós.

Ler as correspondências do autor russo é não só mergulhar no seu inferno pessoal como perceber a grandeza e a desgraça da vida. A eterna ânsia. A estupidez, o desejo e as necessidades primais. O quanto somos ridículos. E como os tais raros conseguem equilibrar isto com uma genialidade sem igual.

Fechei o livro com algumas lágrimas nos olhos e muitas feridas por cicatrizar.