O Brasil e seu pêndulo

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Grupo protesta em ato pela democracia e por justiça por Marielle, no Circo Voador, em abril de 2018: o que explica a crise? (Foto: Mídia Ninja/Creative Commons).

Uma piada recorrente nas redes sociais imagina o Brasil sendo governado à distância dentro de uma sala de roteiro de série de TV. A ideia é que são tantos absurdos em sequência que parece que estamos vivendo coletivamente uma maratona ruim e clichê de um seriado no Netflix ou coisa parecida. Tentando fazer uma sinopse bem por alto, tivemos: uma governante eleita afastada por um golpe orquestrada por um líder parlamentar com ares de vilão; um vice traidor; um protagonista eleitoral preso; um apoiador da tortura eleito em meio a denúncias de uma tramóia digital. De pano de fundo, uma convulsão social e grupos raivosos se enfrentando online e offline. Ainda falta a season finale dessa série ruim, mas um livro lançado recentemente tenta dar conta de compreender todo esse panorama. O Pêndulo da Democracia, de Leonardo Avritzer, traz uma reflexão sobre os componentes que levaram o Brasil a esse estado atual das coisas.

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O autor analisa como o país oscila entre momentos de identificação e ampliação dos valores democráticos e outros de retração desses valores. Esse pêndulo hoje está justamente no espectro mais distante da democracia e segue em um processo de afastamento desde as manifestações de 2013.

Foi em junho de 2013 que a sociedade acordou de um período de relativa estabilidade para entrar em uma crescente de autoritarismo e violência que levou o pêndulo ao extremo em que se encontra hoje, no meio do governo Bolsonaro.

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Com milhões de pessoas nas ruas, o sentimento de convulsão e crise acabaria levando a presidenta Dilma a uma derrocada política que acabaria levando ao golpe parlamentar em 2016. Dois anos antes teve início a Lava Jato, a maior operação anticorrupção, hoje envolvida em denúncias de crimes políticos. Finalizando esse panorama chegou ao poder um presidente abertamente homofóbico e apoiador da ditadura militar e seus torturadores. Mas o que levou o país chegar a esse ponto de tanta inflexão e degradação de valores?

Mas o que explica esse estado de anormalidade após anos de crescimento? O livro de Avritzer coloca logo de cara que trata-se de um movimento não totalmente novo em nossa história. Ao contrário de diversas análises conjunturais que tentam explicar esse momento através de uma lente macroeconômica e social mais objetiva, o autor decide dar alguns passos atrás e pensar em uma construção da sociedade brasileira e seus valores.

O desafio de debater algo no calor dos acontecimentos e suas repercussões também é algo louvável. Em geral, a bibliografia das ciências sociais privilegia esse distanciamento. No entanto, livros como este de Avritzer se unem a uma série de títulos que buscam compreender o presente. É uma forma inteligente de se lidar com o mal estar causado pelas crises de toda ordem.

A estrutura pendular proposta por ele ajudam a entender esses momentos de otimismo e regressão de nossa história em relação à democracia. Segundo o autor, pelo menos desde 1946, que vivenciamos diversas situações de expansão e modernização do nosso sistema político alternados com decadência desse sistema e ascensão do autoritarismo. Bolsonaro, a polarização política e a violência são todos elementos característicos desse pêndulo, mas não são, nem de longe, novidades.

Professor de ciências políticas da UFMG e autor de Impasses da Democracia no Brasil, Leonardo Avritzer traz uma visão original para tentar entender a evolução política nacional: faz isso através de um conceito que se relaciona com a construção da própria sociedade brasileira que, desde sua fundação, adapta valores sociais através de acordos que buscam uma conformação em vez de uma solução real de problemas.

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Avritzer tenta compreender a crise atual a partir das estruturas sociais. Foto: Bruna Vieira/Divulgação.

O Pêndulo da Democracia busca compreender teorias da formação do Brasil sempre com um pé nos dias atuais. Avritzer cita o tempo todo eventos que ainda estão muito marcados em nosso imaginário, mas agora busca associá-los a um entendimento mais amplo. A própria ideia de pêndulo ajuda a entender a história.

“O Brasil tem uma democracia de estrutura pendular que alterna momentos de forte expansão democrática com momentos de regressão democrática”, diz o autor. “Vivemos, pelo menos desde 1946, períodos de forte otimismo nos quais acordos políticos são feitos pela via da modernização lenta e parcial do nosso sistema político. Nesses acordos, entretanto, aspectos fundamentais da nossa estrutura de poder permanecem intactos, tais como um sistema econômico permeado por privilégios políticos, um Judiciário impermeável à modernização democrática, uma estrutura de polícias militares que não permite a generalização de direitos civis, para não falar das forças armadas que, ao se retirarem do poder, trocaram a interferência direta na política pelo corporativismo e alguns projetos militares estratégicos sem transparência alguma”.

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PM atira contra manifestantes no Mané Garrincha: violência é marca da reversão do pêndulo. (Foto: ABr)

Ou seja, no Brasil, a democracia sempre foi relativizada. O país, por esse motivo, oscila entre otimismo democrático e esperança de futuro (casos de 1946-54 e 1985-2014) e outros de forte repressão e pessimismo (1955-84 e 2014-atualmente). Os indicativos da reversão do pêndulo democrático atual, segundo o autor, se dão pelo conjunto de ações em três campos: a contestação das eleições eleitorais por parte de Aécio Neves em 2014 baseado em elementos inconstitucionais; o uso de instrumentos legais de forma heterodoxa (por parte de juízes como Sergio Moro) e as formas de intervenção dos militares na política.

Avritzer analisa também o papel dos atores sociais e políticos nesse movimento pendular, a começar pelas elites, que desde sempre oscilaram em sua relação com questões como justiça social e democracia. Ele também aborda o papel dos militares e do judiciário, que no Brasil construíram uma base sólida de poder que nem sempre esteve alinhado aos valores democráticos.

O livro também discorre longamente sobre o papel do Estado e o modo como ele é encarado por esses diferentes atores. A principal discrepância é o que ele chamada de “crise dos dois Estados”: ou seja, a existência, na Constituição e em diversas leis, de um Estado socialmente justo pensado a partir de 1988 e um estado patrimonialista e liberal, forçado.

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Protesto de mulheres contra Bolsonaro, em São Paulo: valores democráticos precisam ser reforçados. (Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil).

Mas, talvez a maior contribuição de Avritzer sejam suas reflexões sobre uma das maiores expressões desse momento de pêndulo pessimista: a violência. Buscando compreender as raízes da formação do Brasil (desconstruindo autores como Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre), o livro coloca como palco dessa gênese da violência a manutenção de privilégios que perpetuaram uma hierarquia social no país.

Uma violência estrutural que tem a sociedade rural e escravocrata como ponto de partida. Essa igualdade civil incompleta nos leva aos shopping centers impedindo jovens de comunidades de se reunirem e negros do passinho levando baculejo de policiais no centro do Recife. “No momento em que os novos atores excluídos começam a adentrar esses espaços, eles passam a estar sujeitos às mesmas estruturas de exclusão que operavam no cordial mundo rural buarquiano”.

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A mudança da natureza da violência também é estudada no livro, com destaque para a presença dos ataques cibernéticos a partir de 2013. “Estamos assistindo, nesta conjuntura, à expressão de elementos de violência social e política a partir do indivíduo comum e bem-intencionado, mas com baixíssimo nível de informação, que acredita estar tomando atitudes para o bem quando atira na caravana do ex-presidente Lula ou quando ofende jornalistas pelas redes sociais”, diz o autor.

Há ainda nesse debate sobre a violência o crescimento dos evangélicos neopentencostais e sua agenda ultraconservadora de retirada de direitos de minorias, como LGBTI+. Em um país como o Brasil, que passou por diversas experiências autoritárias ao longo do século 20, a democracia é algo bastante frágil. Ao final, o autor destaca que vários fatores podem contribuir para o retorno do pêndulo para o momento de otimismo e aproximação com valores democráticos.

É difícil enxergar otimismo pós-Eleições de 2018, mas os elementos que irão possibilitar uma onda democratizante já são possíveis de se reconhecer. Para Avritzer isso passa, inegavelmente, pela restauração da importância da democracia. Ou seja: as pessoas precisam entender as vantagens desse sistema. Há também o respeito incondicional ao resultado de eleições e o afastamento do jogo político por parte das instituições de controle.

Avritzer destaca também a importância da vigência das políticas públicas, acordadas pela Constituição de 1988 (a instauração da EC-95, que prevê o teto de gastos públicos, proposto por Bolsonaro, é justamente o oposto disso). O autor finaliza que a volta do pêndulo necessita ainda de um retorno ao princípio de legalidade entre os poderes, em especial o Poder Judiciário e o sistema político. Os democratas brasileiros vivem uma situação dura nesse momento, como pode se perceber. O fim desse seriado ruim e o retorno dessa oscilação para um momento de vislumbre de futuro passa por uma articulação de poderes, instituições políticas e sociedade civil.

O PÊNDULO DA DEMOCRACIA
De Leonardo Avritzer
[Todavia, 208 páginas, R$ 69,90 / 2019]

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