O Doutrinador: anti-herói brasileiro é o Exterminador do Presente

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Produzido para ser lançado no período que antecederia as eleições de 2018 no Brasil, O Doutrinador chegou aos cinemas brasileiros na última quinta, dia 1º de Novembro. O filme,  baseado na HQ homônima criada por Luciano Cunha em 2013, traz como protagonista Miguel (Kiko Pissolato), um justiceiro que vem sendo tratado como se fosse a versão nacional dos heróis da Marvel, transformando São Paulo em uma Gotham City tupiniquim. O canal Space vai lançar a série baseada no filme, prevista para estrear em 2019.

Na história original, o personagem era um ex-militar do exército, membro de um grupo paramilitar criado pela ditadura para combater a ameaça comunista,  um “super soldado num país sem guerras”,  e que se converte num anti-herói que sai matando todos os “corruptos” e mata para fazer justiça com as próprias mãos, uma vez que o tal sistema nessa concepção é monolítico, e une políticos, instituições policiais, lideranças religiosas e mídia sem restrições. Qualquer semelhança com a nossa triste realidade não é mera coincidência.

AA 4872 0Na versão cinematográfica, o ex-militar se transforma em um policial de uma divisão especial, o DAE (Divisão Armada Especial) caçando políticos que tem a filha morta por uma bala perdida. Dentre os vilões, a classe política é alvo preferencial, os religiosos são poupados. A elite política da fictícia San Cruz no cinema é composta por figuras caricaturais que lembram ora políticos de esquerda, ora de centro, de nossa história recente, todos mancomunados para surrupiar o país, como a ministra Marta Regina (Marília Gabriela), a candidata Julia Machado à presidência (Helena Ranaldi), seu opositor Antero Gomes (Carlos Betão), além do governador Sandro Corrêa (Eduardo Moscovis). Dentre os políticos não se salva ninguém.AA 6642 0 0

Para atenuar ainda mais seu caráter de ídolo autoritário, nosso herói ganha a companhia da hacker adolescente Nina (Tainá Medina) que visualmente nos remete à irreverente Lisbeth Sallander da trilogia Millenium. Nina, vendedora numa loja de HQs, no entanto, é totalmente submissa e deslumbrada com a atuação de seu  mentor e, a princípio relutante em se unir a ele, logo se converte em cúmplice de seus atos terroristas. As únicas vozes dissonantes nesta paranoia delirante são as de Isabela (Natália Lage), a mulher de Miguel, e a do policial Edu (Miguel Assis), parceiro de Miguel, personagens cujos discursos são totalmente fragilizados pelo caráter golpista e criminoso dos inúmeros cooptados pelo esquema criminoso de propinas, o que inclui o Tenente Siqueira (Tuca Andrada), e o policial Diogo (Nicolas Trevijano).

Os ranços fascistóides do modelo original são preservados, ainda que em versão light. Nos quadrinhos os jovens que vão para a rua protestar, por exemplo, começam a substituir as camisetas com estampas da máscara do Anonymous, popularizada no filme V de Vingança, e usada em manifestações de junho de 2013 no Brasil, pela máscara contra gás do Doutrinador. Assassino frio, ele liquida com pastores, políticos, empresários e cartolas, e faz seguidores entre a juventude, que passa a circular com sua máscara estampada na camiseta Mate todos, que é comercializada pela banda Sepultura. A figura do Doutrinador, que faz jus ao nome e quer formar pessoas e disseminar um discurso baseado em pura violência, passa a ser a grande expressão desses jovens, e exterminar o opositor é a palavra de ordem. O filme de Bonafé pasteuriza essa questão que é essencial para a história original, pois caracteriza o justiceiro como uma espécie de pregador, a ponto de deixar o roteiro inconsistente. Somente ao final do longa, nosso anti-herói deixa claro que ele não é apenas um outsider solitário,  mas representa um conceito de intervenção social, que vai deixar seus rastros de ódio e conquistar mais seguidores.

A direção do longa-metragem é de Gustavo Bonafé e Fabio Mendonça. A adaptação da história foi realizada por Gabriel Wainer, que também assina os roteiros ao lado de Luciano Cunha, L.G. Bayão, Rodrigo Lages e Guilherme Siman. Na historieta de Cunha, Miguel, o personagem de O Doutrinador, defende a violência como única solução para acabar com a criminalidade endêmica de um país assolado pela corrupção. O Doutrinador, lançado em 2013 no Brasil, surge no mesmo momento em que manifestações de rua apoiam o pedido de impeachment da presidenta eleita Dilma Roussef, em 2015, por improbidade administrativa, e em que diversos segmentos da sociedade brasileira reivindicavam a volta do Exército ao poder, e faziam a apologia à tortura, com declarações xenófobas e homofóbicas. Dessa forma, na verdade, o que parece corresponder a uma ânsia de justiça, acaba se revelando como uma reação conservadora a conquistas de setores menos privilegiados e a mudanças profundas no comportamento moral e sexual que se confundem a denúncias de corrupção.

A direção de arte e a fotografia do filme são um ponto forte, bem como a coregrafia das lutas, e atrai os fãs do gênero, assim como a trilha sonora metaleira, pontuada pelo som da banda Possessonica. Uma reflexão interessante sobre esse novo super-herói nacional nos deixa, entretanto, a imaginar o seu futuro diante da realidade, bem mais sombria do que a ficção. Qual o papel de um vingador como Miguel na medida em que o novo governante do Brasil assume,  ele próprio o papel de anti-herói justiceiro em luta contra o sistema?  Apoiar o extermínio em massa daqueles que se opõem? Tanto na história original quanto na versão do cinema, não existe oposição, apenas alguns poucos personagens honestos, perdedores ingênuos que não possuem o menor destaque. O projeto  Doutrinador, filme e série, embora tenha tentado se esquivar da polarização política das últimas eleições, que resultaram na eleição de Jair Bolsonaro, sob um discurso de incitação à violência e de destruição em nome da luta contra a corrupção, dificilmente vai conseguir evitar comparações.  Qual seria o futuro do nosso exterminador e de seus seguidores nesse novo contexto? Talvez justamente se converter em braço armado desse novo ideário totalitarista de exclusão e reacionarismo. A escola de Mutantes  do Universo Marvel , os X-Men criados por Stan Lee, surge na década de 1960,  justamente para discutir a questão da aceitação das diferenças numa sociedade intolerante de pós-guerra. Sem falar de O Justiceiro (The Punisher), talvez o herói vingador mais próximo do Doutrinador, personagem que se enriqueceria caso lhe fosse concedido o benefício da dúvida.
Imagens de Still: Aline Arruda/Divulgação

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