O Gênesis de Crumb

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CONTROVERSA CRIAÇÃO DO MUNDO
Famoso autor de quadrinhos, ícone da contracultura, Robert Crumb ilustra o Gênesis e causa polêmica ao retratar fielmente o Deus das escrituras sagradas: cruel, tribal, patriarcal e genocida
Por Paulo Floro, editor da Revista O Grito!

Alardeado como uma das maiores obras dos quadrinhos já feita, Gênesis, do quadrinhista americano Robert Crumb ganhou o adjetivo de “monumental” e movimentou a mídia mundial. Trata de uma adaptação para as HQ’s do livro da Bíblia que conta a origem do mundo e os primeiros passos da Humanidade na Terra, segundo as escrituras. O livro teve lançamento mundial e ganhou por aqui uma luxuosa edição da Conrad. O que chama atenção é a proposta radicalmente realista de Crumb, ícone da contracultura, atualmente com 66 anos e morando na França. O Deus em seus traços é carregado de raiva, de cabelos e barbas longuíssimas. Cada trecho do Gênesis foi reproduzido fielmente, sem pormenorizar trechos mais crueis, como os dois genocídios cometidos pelo Todo-Poderoso, um durante o Dilúvio que se abateu sobre a Terra e outro quando derramou uma chuva de fogo e enxofre nas cidades de Sodoma e Gomorra. Sem falar nos incestos, sacrifícios e misoginia. “Eu não acho que o Gênesis seja um lugar ideal para se procurar por moral e espiritualidade”, afirmou Crumb em entrevista à agência internacional AP.

Polêmico, o autor preferiu não fazer interpretações próprias do livro, mas teve consciência de que seu trabalho iria incomodar muitos religiosos. Numa das conversas que teve para promover a obra no Brasil, ele disse à jornalista Rosane Pavam que dos judeus ortodoxos ele aguarda a repulsa por ter reproduzido a imagem de Deus. Dos cristãos fundamentalistas, ele espera pelo pior por conta de sua obediência ao texto, muitas vezes modificado, das escruturas. O autor utilizou a tradução recente de Robert Alter e, no decorrer do livro, existem diversas referências e anotações, fruto de muita pesquisa e estudo de Crumb para fazer a obra.

Conhecido por seus trabalhos underground recheados de sexo e drogas, entre eles o gato Fritz e Mr. Natural, causa espanto a fidelidade e por não dizer respeito que o autor teve ao adaptar. Na introdução, chega a se desculpar por ofender os religiosos que lerem o livro. Sua grande sacada é mostrar que, sem escárnio, bastou reproduzir o livro bíblico fielmente para deixar explícito as contradições e idiossincracias que aos nossos olhos, hoje, soam repulsivas. Como contextualizar um Deus tão vaidoso e genocida nas religiões atuais, que, ao menos no discurso pregam justamente o contrário? Desenhando esses acontecimentos, Crumb leva o leitor ao susto diversas vezes. Seu traço está mais contido, menos deformado, mas sem arroubos, ele apresenta um mundo onde Deus age de forma intempestiva, por vezes histérica e extremamente patriarcalista. Está tudo na Bíblia dos cristãos e na Torá dos judeus.

“Se minha interpretação literal e visual do Gênesis ofende alguns leitores, em minha defesa só posso dizer que me aproximei dele como um trabalho meramente ilustrativo, sem intenção de ridicularizar nada nem fazer brincadeiras visuais”, se defende o autor, na introdução da obra. Ateu, Crumb disse que se dedicou a estudar o Gênesis e seus comentários a cada capítulo são fontes importantes para entender como era o pensamento na época em que aqueles textos foram escritos. “É muito primitivo”, afirmou. O projeto foi iniciado em 2005 e só no início deste ano ficou pronto.

No Brasil, os evangélicos e católicos não se manifestaram quanto ao lançamento. Mais por ignorância do que qualquer outra coisa. Mas com certeza não seria a obra ideal para apresentar aos fieis. No entanto, por aqui, a capa foi modificado, optando por um preto mais sóbrio, em oposição à capa original que mostra Adão e Eva sendo expulsos do Éden. A opção teve como intuito conter as reações negativas por parte dos evangélicos.

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Crumb e sua mulher Aline, na residência do casal, no sul da França (Foto: Divulgação)

Força editorial
Tido como um dos mais importantes artistas do século 20, Crumb conseguiu reunir bastante mídia para o seu Gênesis. Para começar, foi feito um lançamento mundial em mais de 12 países, Brasil incluso. Com isso, a obra ganhou um status há muito não alcançado por uma HQ. Talvez nem Will Eisner (Spirit, O Edifício, Avenida Dropsie), um dos autores mais lembrados pela cultura popular quando o assunto é quadrinhos.

Meses antes, uma das revistas mais influentes dos EUA, a New Yorker – da qual Crumb é colaborador – publicou trechos do Gênesis. O retorno foi grande, o que gerou grande burburinho em sites especializados e até na grande imprensa. No Brasil, a revista piauí deu capa e reproduziu trechos do livro em suas páginas. Nos EUA, Gênesis é a HQ mais vendida segundo o jornal New York Times, em primeiro lugar desde a semana passada.

Nascido em 1943, na Filadélfia, Crumb mora desde 1991 na França, ao lado de sua mulher Aline Kominsky, também cartunista. Neste auto-exílio, o autor passa a maior parte do tempo ouvindo discos antigos e lendo bastante. Mesmo após 18 anos no país, ele ainda não sabe falar francês e sai pouco de casa. Nos últimos anos tem se dedicado integralmente aos desenhos. Além do Gênesis, tem feito histórias curtas para revistas como a New Yorker em parceria com Aline e recentemente topou fazer um projeto para a revista de moda e comportamento W, onde contou a trajetória feminina através dos séculos. Em uma série de paineis, ele retratou desde as mulheres nos tempos das cavernas até a soldado Lyndee England, que torturava prisioneiros no Iraque, em 2003.

Atualmente, Gênesis ganhou uma exposição no Hammer Museum, em Los Angeles, com todas as páginas dos 50 capítulos do livro. Depois de anos curtindo seu exílio, Crumb lida agora com a boa repercussão de seu livro e com as novas tecnologias que lhe batem a porta. Quem duvida vermos Crumb em iphones e e-readers em breve?

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Paulo Floro é jornalista e crítico de quadrinhos

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