Pacificado: a nova ordem e seus conflitos em drama familiar

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O filme Pacificado (2019), do documentarista e diretor estadunidense Paxton Winters, produzido por Paula Linhares, Marcos Tellechea, Lisa Muskat e Darren Aronofsky, conquistou o Prêmio do Público de Melhor Ficção Brasileira da 43ª Mostra Internacional de São Paulo, e surpreendeu muitos que viam nele apenas um produto que vinha surfar na onda de filmes sobre a neofavela.

O termo foi cunhado por Paulo Lins em seu romance Cidade de Deus (1995) para descrever as novas regras desses conglomerados habitacionais e o mundo do tráfico sob uma economia global, imaginário popularizado mundialmente com o êxito do filme Cidade de Deus (2002), dirigido por Fernando Meirelles e Katia Lund.

Winters, texano que viveu 18 anos na Turquia e acabou por radicar-se no Brasil, mais precisamente no Morro dos Prazeres, Rio de Janeiro, onde vive há 8 anos, quis filmar em português, longe da icônica Tavares Bastos, favela que é set da maioria dos filmes sobre o tema. Contando com elenco que reúne pessoas da comunidade que adotou, e atores profissionais, alguns veteranos como Léa Garcia, Winters conseguiu fazer a diferença ao narrar a história de uma adolescente de 13 anos, Tati (Cassia Nascimento), que tenta se reaproximar do pai, Jaca (o congolês Bukassa Kabengele, premiado como melhor ator no Festival de San Sebastián), que mal conheceu, preso por 14 anos, por tráfico, e sai da prisão para recomeçar a vida longe do crime organizado, o que não é nada fácil.

O novo gerente da boca é o jovem Nelson (José Loreto), que vai fazer de tudo para firmar-se como líder e enfrentar a volta de Jaca, para ele uma ameaça.

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A abordagem da temática social, da favela e da periferia não constitui em si propriamente uma novidade no nosso cinema, nem começou com o filme de Meirelles e Lund. O primeiro tratamento do tema é provavelmente Favela dos meus amores (Humberto Mauro, 1935). Desde esta época, não faltam filmes com referências às favelas, morros e cortiços, e cuja orientação ideológica, conforme assinala o pesquisador Arthur Autran, se pauta em geral pelo populismo romântico.

Na literatura, a temática está presente desde Memórias de um sargento de milícias (1853) de Manuel Antônio de Almeida, obra que inspira o antológico ensaio de Antônio Cândido A Dialética da Malandragem (1970), e perpetuou-se em autores tão diferentes quanto Aluísio Azevedo, cuja obra O Cortiço (1890), que tem como protagonista o proprietário ambicioso João Romão, rendeu filme em 1978, Lima Barreto e Jorge Amado, escritor mais adaptado para cinema e televisão, preferencialmente com atrizes e atores brancos performando papeis de mulatos e negros.

Com Rio, 40 graus (1955), obra emblemática do moderno cinema brasileiro, surge, no entanto, uma abordagem mais realista e politizada deste fenômeno urbano e social que terá continuidade em filmes como Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957), Cinco vezes favela (Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Marcos Farias e Miguel Borges, 1962) e A grande cidade (Carlos Diegues, 1965).

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Pacificado segue essa trilha, porém afasta-se do modelo narrativo consagrado por Cidade de Deus e Tropa de Elite, com hits musicais e estética de videoclipe, e tampouco envereda pelos longos planos-sequência comuns a obras do neorrealismo, revisitado por diretores do chamado cinema independente contemporâneo como Alfredo Cuarón ou Brillante Mendoza. A utilização da linguagem coloquial e urbana, a ambientação natural, a utilização de pessoas comuns da comunidade para interpretar personagens, estão lá, e conferem um ar documental à obra, mais associada ao estilo de documentário direto, tendência que não chega a radicalizar.

O grande trunfo do filme, no entanto, é justamente abordar esse drama familiar que transcorre numa comunidade pobre do Rio com o mesmo enquadramento e naturalidade que seria factível num drama similar de classe média.

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Naturalmente, as condições são bem diferentes. Mas a ideia de ser feliz e ter uma família “normal” é o sonho da maioria, mesmo quando essa família é um tanto disfuncional. A questão aqui não é abordar a droga do ponto de vista legal ou social, ou o mundo do crime. Mas essa cidade partida, como a ela se referiu Zuenir Ventura, não pode ser ignorada ou apagada da memória em nome do turismo.

As pessoas na verdade são criminalizadas segundo sua hierarquia social, o que se reflete de forma cômica em cenas como a de Jaca no posto de saúde, convencendo o médico a fornecer uma receita de um remédio “tarja preta” para seu irmão Dudu (Raphael Logan) em troca de uma trouxinha de maconha.

Winters vinha de duas produções turcas, a série televisiva Alacakaranlik (TV Series), e Crude (2003), e de uma longa carreira como documentarista e repórter de televisão. O filme Pacificado tem esse nome derivado da operação que decidiu colocar ordem nas favelas para receber turistas dos Jogos Olímpicos, com a instalação de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras) nas comunidades, estratagema político que Winters acompanhou de perto, no dia a dia.

Em 2019, com o Rio tomado por milícias, episódios violentos como o assassinato de Marielle Franco, e mortes por bala perdida, essas operações estão em crise. Os cidadãos de bem, e particularmente aqueles pobres e pretos, continuam a ter mais medo da polícia do que dos bandidos. E se nada será como antes, é verdade que a droga e a violência não serão extirpadas do nosso convívio com ações simplistas de efeito midiático. Elas estão inseridas na sociedade em que vivemos, fazem parte do tal sistema – essa questão recebe apenas pinceladas nas cenas, poderia ser mais pontuada.

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O filme não discute exatamente essa temática, mas deixa claro que as pessoas que vivem ali são como todas as outras. Sem adotar o realismo cinemanovista, ou o estilo frenético das produções mais recentes sobre favela, Pacificado não cai na armadilha do populismo romântico, e nem faz sensacionalismo.

Os novos negócios de Jaca podem não ser tão isentos como ele gostaria, e a favela ainda é a favela, mas Tati e sua família têm direito à cidadania plena ao menos em termos de representação. Sua mãe, Andreia (Débora Nascimento), viciada e inconsequente, não consegue dar conta de cuidar da filha, que vai encontrar no pai o apoio para ser mulher num mundo tão adverso, mas sem pieguice.

Esse final aparentemente feliz não representa a redenção da personagem ou uma conciliação entre os diferentes universos sociais. Afinal, Tati não é Buscapé, personagem de Cidade de Deus, o filme, que termina conseguindo se dar bem no outro lado da cidade, solução que não faz jus ao universo literário de onde ele se originou.

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