Papo com Ana Cañas, que lança disco com releituras de Belchior: ” A arte sempre nos convida ao novo, ao diferente”

"Coração Selvagem" é o primeiro single e clipe deste novo trabalho, que será lançado ao longo do ano

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Ana Cañas lança primeiro single do álbum em que canta a obra de Belchior (Foto: Ariela Bueno / Divulgação)

Ana Cañas lança sua gravação da música “Coração Selvagem”, de Belchior. É o primeiro single de um disco dedicado ao cantor e compositor que faleceu em 2017. A releitura da cantora e compositora vale a pena ser ouvida: tem personalidade e beleza. Assim como vale assistir ao videoclipe que ela lançou junto. A faixa pertence ao próximo projeto da artista, em que interpretará sucessos do cantor cearense. “Suas músicas cruzaram os tempos (e continuarão cruzando) pela dicotomia existencial, metafísica e profundidade poética”, enaltece a artista paulista de 40 anos. As demais músicas do projeto virão a público a prestações: quatro em julho, outras quatro em agosto e mais cinco em setembro.

A ideia do álbum surgiu organicamente: Cañas sempre interpretou canções do artista durante seus shows. Naturalmente, o público pedia pela gravação de um registro que trouxesse essas apresentações. Isso foi potencializado quando, durante a quarentena, decidiu fazer uma live cantando Belchior.

Nos últimos anos, a artista participou de manifestações e chegou a percorrer capitais ao lado do ex-presidente Lula. “A democracia está ameaçada. Porque defender a liberdade e a justiça social são fundamentais”, assegura.

Por se posicionar, Cañas já foi alvo de cerveja, ovo e pedras durante suas performances no palco. Ela já recebeu, inclusive, ameaças nas redes sociais. “Em tempos obscuros, é necessário denunciar as estruturas de opressão, romper silenciamentos e trazer à tona os direitos fundamentais”. Veja o papo que batemos com a cantora:

Por que você começou a cantar? De onde surgiu a necessidade de criar e cantar músicas que falassem sobre a realidade a sua volta?

Comecei a cantar por necessidade financeira. Até então, eu não tinha cogitado me tornar uma cantora. Saí de casa cedo, precisava me sustentar sozinha e fazia mil bicos nessa época. Um amigo apareceu com um convite pra cantar num hotel. Decorei as músicas (que eram da Billie Holiday e Ella Fitzgerald) e deu certo, fui contratada. Passei a cantar na noite em inúmeros bares de São Paulo e a sobreviver desse trabalho. A arte sempre esteve na minha vida, na adolescência fazia teatro com um grupo independente e acabei estudando para me tornar professora. Mas eis que a vida se impôs e mostrou que meu caminho seria outro.

Em tempos obscuros, é necessário denunciar as estruturas de opressão, romper silenciamentos e trazer à tona os direitos fundamentais e fazer as reparações históricas necessárias.

 
De onde vêm as suas principais referências e inspirações na arte?

De muitos lugares diferentes! Amo cinema, literatura, dança, fotografia. Poderia citar alguns artistas que me influenciam com seus universos tão ricos e plurais como Bergman, Pasollini, Antonioni, Glauber Rocha, Racionais, Gilberto Gil, Ana Cristina César, Hilda Hilst, Pina Bausch, Miguel Rio Branco, Rita Lee, Nina Simone e tantos outrxs.
 
Como é criar em um período de distanciamento social?

É um grande desafio dadas as limitações. Temos a responsabilidade coletiva do distanciamento, mas o disco do Belchior me trouxe essa demanda de gravar, editar, fazer clipes e fotos no meio da pandemia. É um convite à reinvenção das estruturas, dos formatos. A arte sempre nos convida ao novo, ao diferente.

As divas do jazz têm uma parte fundamental na sua descoberta como cantora?

Sim, eu comecei por elas – quase sem saber cantar, o que era uma melodia, tom ou harmonia. Mas foi a melhor escola. Particularmente, Nina Simone e Billie Holiday exercem um domínio no meu coração. O canto delas me atravessa há décadas. São mulheres muito fortes e que enfrentaram opressões de maneira muito corajosa. Eu as admiro muito.
 

Você nos presenteia com uma linda versão de ‘Coração Selvagem”, primeiro single do seu novo disco, em homenagem a Belchior, um dos maiores compositores da história da nossa música. De onde vem o interesse em gravar o álbum do cantor e compositor cearense? Qual a previsão de lançamento do seu álbum?

Obrigada! Eu venho cantando Belchior há quatro anos nos meus shows – sempre coloquei uma canção dele no meio do meu repertório autoral. Suas músicas cruzaram os tempos (e continuarão cruzando) pela dicotomia existencial, metafísica e profundidade poética. Eu sou apaixonada por suas ideias, valores e lirismo. O disco foi uma surpresa, pois o pedido veio dos fãs após uma live que fizemos em homenagem a ele (que inclusive foi feito com financiamento coletivo). O disco sai nos próximos meses, de forma desmembrada.
 

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“Suas músicas cruzaram e cruzarão o tempo”, diz Ana Cañas sobre Belchior. Foto: Reprodução / Facebook Ana Cañas)

O que você mais nota de diferente entre interpretar músicas dos outros e suas próprias músicas?

É muito diferente, sem dúvida. Existe uma responsabilidade maior em versar letras que não escrevi. Muitas vezes existem outras regravações importantes da mesma música, então preciso sempre encontrar uma forma de alinhar o meu olhar, a minha vivência com o que o compositor/a propõe. É um desafio que te faz crescer artisticamente.
 

Você já foi vítima de um ovo em sua direção num show na Bahia por cantar músicas de empoderamento feminino e críticas ao patriarcado. Como você vê a importância as lutas do feminismo? Qual importância que você vê e se vê, nesse contexto, das lutas feministas?

O feminismo é fundamental para construirmos uma outra sociedade – justa, equânime, igualitária. Em tempos obscuros, é necessário denunciar as estruturas de opressão, romper silenciamentos e trazer à tona os direitos fundamentais e fazer as reparações históricas necessárias. É também sempre muito importante ressaltar a interssecionalidade dentro do feminismo e as diferentes camadas de vulnerabilidade entre raças e classes sociais.
 

Você tem atuando a favor da democracia, foi contra a prisão do Lula e crítica o negacionismo do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro. Como você entrou nisso e por quê?

Porque a democracia está ameaçada. Porque defender a liberdade e a justiça social são fundamentais. Enquanto houver pessoas em situação de extrema pobreza, miséria e vítimas de opressões históricas (racismo, machismo, LGBTfobia, feminicídio) é preciso lutar contra os privilégios que se perpetuam para a manutenção de espaços de decisão e poder.
 
E quando o assunto é música, o que você gosta de ouvir?

Muita coisa! Clube da Esquina, Cássia Eller, Jeff Buckley, Feist, Gal Costa, Erik Satie, Alcione, Zeca Pagodinho, Almir Sater, Sabotage… muita gente!

Você acha que o papel dos artistas é de resistência, mas também despertar esperança?

Com certeza, acredito que seja fundamental a esperança. Com ela há horizonte. Tá tudo tão nebuloso, difícil e surreal, que sem ela, sucumbimos. Um beijo!