Lírio Ferreira, diretor de Sangue Azul: “Fazer cinema é uma atividade de risco”

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Cena de Sangue Azul, de Lírio Ferreira. (Divulgação).

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Diretor pernambucano volta à ficção após anos fazendo documentários e aborda relação incestuosa entre irmãos

Por Karen Lemos
De Paulínia (SP)

Sem produzir um longa-metragem desde 2005 e longe da ficção desde 2009, o pernambucano Lírio Ferreira estava sentindo falta de algo. “Queria ter gente se bulindo na minha frente de novo”, riu o cineasta ao enumerar os motivos que o levou a realizar Sangue Azul, seu novo trabalho cuja estreia aconteceu na noite de sexta-feira (25) no Festival de Cinema de Paulínia, no interior de São Paulo, e foi dedicada à Ariano Suassuna (1927 – 2014).

“Eu tinha um desejo de filmar alguma coisa assim depois de tanto tempo fazendo documentários”, acrescentou Lírio, cujos últimos trabalhos foram O Homem que Engarrafava Nuvens, sobre o compositor Humberto Teixeira, e Cartola – Música para os Olhos, que foca na vida e obra de um de nossos mais célebres sambistas.

O diretor retorna à sua velha poesia cinematográfica – aquela que marcou o cinema brasileiro e trouxe destaque à produção pernambucana com Baile Perfumado em parceria com Paulo Caldas – ao contar a história de Zolah (Daniel de Oliveira), artista de circo que deixou a ilha na qual morava para ganhar o mundo se apresentando como o homem bala da trupe. Seu retorno à terra natal traz sombras do passado, entre elas, uma paixão proibida que nutre por sua irmã Raquel (vivida por Caroline Abras).

Não é um filme fácil. Indigesto em alguns momentos e altamente erótico em outros, poucos espectadores – desavisados sobre o tema do filme – levaram suas crianças e, no meio da sessão, deixaram a sala muito antes de seu término. Foram exceções. Grande parte do público permaneceu na sala praticamente lotada e aplaudiu a obra logo após sua projeção.

Lírio voltou à ficção (Foto:  Mario Miranda Filho/ Divulgação).
Lírio voltou à ficção: “gosto de fazer um cinema solto” (Foto: Mario Miranda Filho/ Divulgação).

A desistência de algumas pessoas da plateia já era algo esperado na visão do cineasta. “Fazer cinema é uma atividade de risco, é sair da zona de conforto”, explicou. “Jogo minhas cartas e tento fazer com que façam sentido com o que propus no roteiro”.

Protagonista de grande parte das cenas mais quentes, Daniel de Oliveira saiu em defesa da obra: “As cenas foram colocadas no filme de forma bonita e natural. Em outros filmes que eu fiz, eu senti algo mais pesado. O Lírio é muito delicado para mostrar as coisas”, explicou o ator que, em 2009, gravou cenas de incesto entre pai e filho para A Festa da Menina Morta de Matheus Nachtergaele.

“Fernando de Noronha vai me deixar louco”

A ilha de Fernando de Noronha foi escolhida como cenário da trama. Suas belezas contrastam com os dramas de seus moradores e visitantes. “Esse lugar vai me deixar louco”, chega a dizer um dos artistas do circo no longa-metragem.

A forma como o local é apresentado é uma das mais belas já realizadas pelo cinema. O filme começa em preto e branco (quase temos a impressão que será assim ao longo da projeção), porém, com a explosão do canhão e o voo do homem bala, tudo ganha cores: o circo, a lona, a plateia e, em cenas posteriores, as árvores, a areia e o mar de Fernando de Noronha.

“Tinha um receio de filmar no paraíso e deslumbrar logo de cara”, explicou Lírio, que criou um artifício para não entregar logo os pontos. “Pensei em uma maneira de filmar os 15 minutos iniciais sem deixar o espectador inebriado com as imagens lindas da ilha”. A sequência veio de lembranças que Lírio guardou na mente. “Acho que vi isso acontecendo em Ivan, o Terrível, de [Sergei] Eisentein’”, recordou. Muitas das cenas foram pensadas assim, resgatando ricas referências de sua memória. “São os caboclos que descem”, brincou Lírio ao ser questionado sobre o tema.

Daniel Oliveira defendeu as cenas de sexo. (Foto:  Mario Miranda Filho/Divulgação).
Daniel Oliveira defendeu as cenas de sexo. (Foto: Mario Miranda Filho/Divulgação).

Sobre o tipo de arte que produz, Lírio foi enfático ao ressaltar sua preocupação (ou falta dela) com a obra viva e aberta. “Eu gosto de fazer um cinema solto”, definiu. “Talvez seja mais arriscado, mas gosto de deixar aberto, com buracos no meio, sem costurar, sem portas fechadas, sem certeza absoluta. Dá para assistir Sangue Azul daqui 10 anos e perceber novas coisas”, pontuou.

Sangue Azul ainda traz em seu elenco Ruy Guerra, Paulo César Pereio, Milhem Cortaz e Matheus Nachtergaele em ótimas atuações coadjuvantes, além da premiada em Cannes Sandra Corveloni, que interpreta a mãe dos irmãos, responsável pela separação prematura de seus filhos ainda na infância. Vale destaque também a participação especial da cirandeira Lia de Itamaracá, que emociona ao cantar rodeada pelos personagens em um momento chave do filme.