Resenha: Tradução e afeto em A Chegada, de Denis Villeneuve

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Nas tarefas humanas tudo é penetrado pelos afetos. Por mais que a História, a Sociologia, a Ciência e a Política sejam muitas vezes vistas como objetos quase externos a nós, ou como “meras” ferramentas de análise do mundo, a verdade é que elas todas são também constituídas pelos afetos que alimentamos – ou deixamos de alimentar – durante a vida. Esse parece ser um dos tantos mistérios que A Chegada (2016), de Denis Villeneuve, soube desvendar muito bem, e sem dúvida é essa percepção fina que permite a grande reviravolta do filme.

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A Chegada apresenta a história da linguista Louise Banks (Amy Adams) que, em meio a um turbilhão de lembranças de sua filha morta (vítima de uma doença terminal), é convocada pelo governo dos EUA para compor uma equipe especial, cujo objetivo é entrar, pacificamente, em contato com visitantes insólitos: alienígenas que habitam enormes discos verticais. Vendo-se entre tantos homens de guerra, Louise encontra outro cientista, o físico Ian Donnelly (Jeremy Renner), que acabará por ser seu principal companheiro na missão que lhes foi incumbida.

Embora alguns possam torcer o nariz logo de cara, pensando “é mais um filme de alienígena”, a verdade é que a visita extraterrestre aqui é, como em Sob A Pele (2013), de Jonathan Glazer, antes um pretexto para uma reflexão de fundo existencial (como costuma ocorrer em muitas das melhores ficções científicas). A diferença com relação a Sob A Pele é que A Chegada, mesmo com toda a carga reflexiva que traz, distancia-se da arthouse, e mantêm a pose do blockbuster que, de fato, é. A questão é a seguinte: se você não é afeito a “filmes de alien”, ainda assim, dê uma chance a esse “filme de alien”.

Outra sutileza do filme é que, diferente de grande parte das ficções científicas em que a ciência está lá para fornecer o aparato de conquista do espaço, ou o armamento de combate, ou ainda para subsidiar um universo hi-tech num futuro qualquer, aqui a ciência se debruça especificamente sobre a linguagem e sobre a comunicação, sobre as pontes que lançamos ao contatar o outro. Claro que outros filmes de ficção científica, tais como Contato (1997), de Robert Zemeckis, e Contatos Imediatos (1977), de Steven Spielberg, debruçam-se sobre a questão da comunicação, mas A Chegada enfatiza especificamente o problema linguístico, remontado ao mito bíblico de Babel. Neste mito, Deus castiga os humanos por buscarem acessar o reino dos céus, e confunde a língua humana, até então única, em diversas línguas, gerando a discórdia e a confusão entre todos.

Em A Chegada, essa calamidade absoluta se instaura com a aparição das naves alienígenas: as nações divergem sobre as estratégias de como abordar os visitantes, competem entre si para decifrar as mensagens enviadas pelos alienígenas, e a violência civil cresce exponencialmente. Como se vê, esse é um problema de tradução em muitos níveis. Como traduzir a presença do inesperado, do radicalmente outro? A estas questões o filme não deixa respostas, mas pistas preciosas.

A Chegada recebeu oito indicações ao Oscar: melhor filme, roteiro, direção, fotografia, edição, mixagem de som, edição de som e design de produção.

Embora o eixo que retrata as calamidades não seja exatamente original, o fato é que ele não quer ser. Trata-se de uma espécie de tropo, em que essa convenção do gênero sci-fi é ressignificada pelo já citado mito, dando todo pano de fundo necessário para os dramas da linguista Louise Banks. E aqui se apresenta uma segunda via temática bastante significativa. Ao fim e ao cabo, o filme é sobre decisões, sobre como traduzir para si mesmo determinados acontecimentos, e nesse sentido o filme desemboca numa perspectiva bastante existencialista de aceitação do absurdo da vida. E mesmo esta perspectiva acaba por emergir das formas de compreensão da linguagem.

A língua utilizada pelos alienígenas não faz coincidir fonema e escrita, e mais, a escrita não é linear como a ocidental, ela é antes uma espécie de ideograma super complexo, circular e rebuscado. Em tudo, essa forma de escrita é oposta ao modo linear, absolutamente racional e estreito da escrita ocidental. Se se levar em conta uma informação dada anteriormente no filme, a de que existe uma teoria amplamente aceita por filósofos da linguagem e linguistas, que diz que a cognição humana, isto é o modo pelo qual o ser humano apreende o mundo, é em grande medida determinado pela língua, podemos chegar a uma nova conclusão.

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O filme parece apontar que essa forma de vida superior está para além das “mesquinharias” geradas pelos conflitos em Babel, ela está para além do progresso racionalizante do Ocidente, que acabou por gerar todas as modernas e mais catastróficas formas de conflito. Mas esta forma de vida só pode estar para além de todas essas coisas, pois sua língua e, portanto, sua cognição, favorece a visão do todo, do tempo cíclico (até mesmo mítico), de modo a desviar das fragmentações esquemáticas, e assim compreender e estender uma ponte ao outro.

Aqui, na verdade, o filme entra num breve paradoxo, e num problema considerável, mas não inesperado. De todas as nações no mundo, os EUA aparecem como a mais compreensível, pacífica e altruísta para com os visitantes. Além disso, mesmo que com uma ressalva ao final, o filme não se furta em apresentar os chineses como uma nação violenta e belicosa (tão ‘diferente’ dos EUA…). Ainda assim, até mesmo esse velho discurso ganha contornos interessantes no interior da questão da linguagem, um certo “ideograma alienígena” é interpretado pelos chineses como “arma”. Entretanto, Louise conclui, pode também significar “ferramenta”, o que a leva a prosseguir e manter um contato mais estreito com os visitantes.

Porém, outros três problemas surgem durante o filme. O primeiro é que o encaminhamento do conflito entre as nações, embora seja plausível e bem embasado, incorre num tempo razoável e desnecessário de clichês hollywoodianos, quando o filme pedia por um aprofundamento em outros conflitos mais bem estabelecidos.

O segundo, é uma questão de roteiro que não pode ser contada aqui, mas, devo dizer, consiste num desenlace de conflitos bastante preguiçoso, o chamado “deus ex machina“. O último são as memórias da filha morta, o aspecto delas fica entre o transcendentalismo (às vezes já duvidoso) de Terrence Malick, e as propagandas emotivas de alguns bancos que “vendem felicidade”. Há certa inconsistência de linguagem nesses trechos, e certa pressa simplificadora.

Esses três problemas acabam por endossar um sentimentalismo gratuito e um discurso pacifista um tanto óbvio, que, novamente, adquire maior interesse quando enviesado pela questão central da linguagem. Mesmo assim, a densidade temática do filme é enorme, e o melhor, ela é mantida através da tensão e do suspense, e não apesar deles. Desse modo, os defeitos do filme, embora estejam lá e o maculem, são minimizados perante o todo da obra.

(Há ainda mais uma sutileza, que creio que deve ser observada. Na realidade, ela me foi observada por um amigo: há um romance inteiro apresentado no filme, talvez um dos mais complexos romances, que prescinde de beijos, ou mesmo de um beijo sequer. E, no entanto, emerge dali um carinho e um afeto profundos, talvez justamente porque só estejam ali ainda em potência, e não em realização plena. A esse tipo de construção, aliás, deve-se grande parte da melancolia do filme, é como se certas coisas só pudessem ser plenas ainda em potência e estivéssemos sendo constantemente expulsos do paraíso.)

O mais instigante de A Chegada, e o que torna a obra tão potente enquanto todo, é que não só se articulam todas essas camadas temáticas, como aquela tese sobre a língua dos alienígenas é retomada na estrutura do roteiro, que se constitui numa narrativa circular.

Esta estratégia de roteiro, portanto, é mais do que artifício ou maneirismo, ela remonta àquela forma holística, total, e cíclica que os extraterrestres vêm opor ao progresso caduco da Terra. Louise é sem dúvida a mais sensível a esse tipo de cognição, o que a torna um personagem complexo e intrigante, sobretudo quando confrontada com certas decisões fundamentais, que, afinal, vão além do tempo.

A pergunta que ela se faz, os sentimentos que ela busca traduzir, tudo isso permanecerá ecoando em nossas cabeças. E é aqui que vemos aquela compreensão tão sutil, que a um só tempo sustenta o filme e é por ele sustentada, a de que: Nas tarefas humanas, tudo é penetrado pelo afeto.

A CHEGADA
De Denis Villeneuve
[Arrival, EUA, 2016 / Sony Pictures]
Com Amy Adams, Jeremy Renner, Forest Whitaker