Silvestre, de Wagner Willian aborda a beleza e a violência do desconhecido

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Foto: Divulgação.
9.5

O quadrinista e pintor potiguar Wagner Willian levou o termo “visceral” a um outro nível com sua obra, Silvestre, lançada neste início de ano pela Darkside Books. Sempre evito usar esse chavão em críticas (a experiência nos dá esses presentes), mas aqui o termo aparece em forma e conteúdo e faz muito sentido, então já vou pedindo licença.

Na trama, um velho caçador vive isolado em sua cabana no meio de uma floresta. Após a caçada a um animal raro, ele decide assar uma torta. O aroma do quitute atravessa as paredes da casa e percorre as matas e atrai todo tipo de criatura fantástica para um conclave repleto de lendas.

A partir desse mote temos uma viagem ao mesmo tempo bela e violenta repleta de referências literárias e da cultura pop (e uma dose de nostalgia). Tudo para explorar o poder dessas reconexões com a natureza e o desconhecido. Willian é conhecido por seu trabalho em HQs como Bulldogma e O Maestro, o Cuco e a Lenda, mas também tem um trabalho importante como pintor. E essa sua persona artística é bastante bem explorada nesse quadrinho.

A obra não segue uma narrativa clássica e nem mesmo se apega aos ditames do que seria uma “história em quadrinho” clássica (se é que isso existe). Exemplificando melhor: Silvestre soa, ele próprio, como um ser raro, indomável, indistinguível sobre sua real natureza, pois não conseguimos identificá-lo bem, apreciá-lo com calma, defini-lo. Nunca fui caçar ou me aventurar por uma floresta (e nem pretendo, inclusive), mas a sensação do observador me parece sempre fugidia, rara. É o oposto de um zoológico, por exemplo, onde os animais estão ali impassíveis e a natureza é apenas um enquadramento. Bom, assim é Silvestre.

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Por um momento tentamos perceber o quanto o livro soa como uma experimentação entre o livro ilustrado e o quadrinho tradicional. De repente, Willian já aponta outra direção e trabalha numa proposta ainda mais ousada, como um caderno de esboços.

De repente, a HQ retoma o padrão com uma belíssima sequência de pura narrativa quadrinística, para, finalmente romper mais uma vez com o fluxo da leitura e nos apresentar uma sequência de painéis pintados e bastante dramáticos que servem para pontuar o clímax da história. Entre os materiais estão tinta a óleo, óxido de ferro, nanquim e até mesmo sangue do próprio autor. Todas essas técnicas e decisões narrativas do autor ajudaram a compor um gibi bastante imersivo que te faz ficar perdido dentro da história mesmo horas depois de fechado o livro.

Silvestre tem clara e declarada influência do poeta e filósofo Henry David Thoreau , escritor norte-americano que se exilou no meio de uma floresta em 1845 para viver com o mínimo necessário para sobreviver (ele ergueu a própria casa e mobília com as próprias mãos e fez um manifesto sobre a vida na natureza, Walden; tem uma HQ francesa sobre ele, Thoreau, de A. Dan e Maximilien Le Roy, que inclusive falamos sobre na Plaf #1. Mas tergiverso). Thoreau pode ser uma referência imediata para este quadrinho, sobretudo em relação às suas ideias anti-establishment e naturismo, porém há também um contato muito grande com as histórias clássicas de Jacob e Wilhelm Grimm, cujos textos recuperavam tradições orais da Europa medieval em histórias infantis brutais e violentas (que seriam “amenizadas” nos anos seguintes).

As lendas são, justamente, fruto desse embate do humano com o desconhecido. E por mais que cheguem à cultura popular um estado amistoso desses mistérios (as fadas, as princesas, os seres mágicos), a base dessas histórias visava uma educação à base de muita cautela e respeito frente a essas lendas. Neil Gaiman foi outro autor que se inspirou nesse imaginário lendário mais remoto ao retirar esse verniz apaziguador dos contos de fadas na série Sandman e mais tarde no livro Deuses Americanos.

A real é que os autores e autoras estão o tempo todo acessando esses imaginários (ainda que indiretamente ou mesmo sem se dar conta), pois eles fazem parte do nosso próprio entendimento como humanos.

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A grande sacada de Willian aqui foi misturar diferentes lendas e mitos, aparentemente desconexas, de modo a criar um pano de fundo bastante rico para a história. Os seres que visitam o caçador em sua cabana vêm de todos os lugares, épocas e tradições, com destaque para personagens brasileiros, como o Curupira, a Mula Sem Cabeça e até a Cuca do Sítio do Pica-pau Amarelo. Há também o diabo, a raposa, o cervo sagrado. São muitos e descobri-los é parte da graça da leitura, por isso vou parar por aqui em nomeá-los.

Apesar de bastante diferentes, todos aparecem como uma representação desse desconhecido, que pode ser até mesmo uma metáfora da nossa necessidade de se apegar a esses mistérios. Ou mesmo uma leitura do humano contra os deuses. As vozes dissonantes desses seres também falam muito das culturas politeístas, cujos mitos e histórias apenas apontam caminhos em oposição aos dogmas da Verdade absoluta do monoteísmo. Outro ponto em comum nesses ancestrais selvagens é a violência inevitável desses encontros, como se a racionalidade não conseguisse dar conta de compreender aquilo que é por natureza indomável. Essas inúmeras leituras são parte da riqueza dessa HQ.

Como quadrinho e como projeto gráfico Silvestre impressiona e mostra que a HQ realmente explorou todas as possibilidade da própria linguagem do meio, bem como o formato livro, o que justifica escolhas interessantes no letreiramento, na colorização (aquela base sépia que lembra um caderno velho, perfeito), entre outros detalhes. E como trabalho autoral, a obra reafirma Wagner Willian como uma das vozes mais importantes e inventivas do quadrinho contemporâneo brasileiro.

SILVESTRE
Wagner Willian
[Darkside Books, 2019]

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