Crítica – Teatro: Última peça de Cadengue, Em Nome do Desejo, encerra temporada

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Espetáculo é dedicado à memória de Antonio Cadengue. (Foto: Yeda Bezerra de Melo/Divulgação)

Assumindo um caráter de homenagem ao legado do diretor e dramaturgo pernambucano Antonio Cadengue (1954 – 2018), a peça Em Nome do Desejo está em cartaz no Teatro Barreto Júnior, no bairro do Pina, na Zona Sul do Recife, até este final semana. As apresentações serão no sábado (22) e no próximo domingo (23), às 20h. O trabalho, que estreou em 1990, marcou época.

Desde o início deste ano, o diretor, que faleceu no dia 1º de agosto, estava dedicado à remontagem dessa obra, que se baseia no romance homônimo de João Silvério Trevisan. O espetáculo foi um dos primeiros trabalhos da Companhia Teatro de Seraphim, fundada por Antonio Cadengue em 1990.

Antônio Cadengue foi também um dos fundadores da Companhia Práxis Dramática, nos anos 1970 e dirigiu espetáculos para o Grupo Vivencial. O diretor tornou-se um especialista em obras de Nelson Rodrigues, de quem encenou Toda Nudez Será Castigada, Senhora dos Afogados, Viúva, Porém Honesta e Doroteia. Dirigiu também a adaptação da ópera O Guarani para o Quinteto Violado.

Originalmente, Em Nome do Desejo foi concebida como prova pública do Curso Básico à Formação do Ator, da Fundação Joaquim Nabuco, onde Cadengue ministrou a disciplina de improvisação/interpretação. Após o compromisso com a Fundaj, levou a peça para a Companhia Teatro de Seraphim. Após dois anos, a companhia realizou a segunda montagem da peça, que circulou até 1996.

Da atual versão, a encenação pouco mudou. Os elementos centrais são os mesmos. O elenco atual é formado por atores jovens. Igor de Almeida (Co-direção) assumiu o comando da peça com o falecimento de Cadengue. À época da segunda versão, o jornalista, e um dos nossos editores, Alexandre Figueirôa escreveu a crítica da peça, publicada em abril de 1992 no Caderno C, do Jornal do Commercio, a qual reproduzimos aqui no Grito!

Melodrama sem recato*
Alexandre Figueirôa

Antiga montagem

Os grande e bons melodramas românticos hollywoodianos eram pródigos na construção de uma narrativa com a música aparecendo como suporte dramático. Suave nos momentos de ternura, eloquente quando os personagens enamorados se consumiam de paixão, a melodia era quase um personagem. Sua presença deixava de ser invisível para se tornar tão envolvente quanto as imagens. A interpretação dos atores também não deixava por menos. Marcada por gestos arrebatados, expressões de dor e piedade, empenhadas em revelar a fragilidade da condição humana quando se mergulha num drama amoroso, ela envolvia o espectador a ponto de ser impossível não se identificar com aqueles seres fictícios projetados na tela.

Em Nome do Desejo, dirigido por Antônio Cadengue, não é um filme romântico dos anos 40. É um espetáculo teatral em cartaz atualmente no Teatro Barreto Júnior. A comparação, contudo, será inevitável. Com a encenação concebida a partir de um ritmo próximo da montagem cinematográfica e dando ênfase ao binômio música e imagem a direção materializou no palco alguns dos elementos que fizeram do melodrama um gênero amado.

É claro, no entanto, que o espetáculo de Cadengue, uma adaptação do romance homônimo de João Silvério Trevisan, não tem o mesmo recato e pudicidade dos filmes dos anos 40. Para contar a história de dois jovens seminaristas que se apaixonam perdidamente enquanto estão preparando sua carreira religiosa, o encenador, como o texto original pedia, estabeleceu uma relação entre o sagrado e o profano que provocaria rubores nas plateias das décadas passadas.

Mesmo hoje há resistência para se encarar o amor homossexual como algo tão natural quanto a paixão entre pessoas de sexos opostos. Mas Cadengue não se intimidou diante disto e colocou no palco tudo que é preciso para mostrar uma história de duas pessoas que se amam. O resultado faz jus à carreira do encenador. Inegavelmente Em Nome do Desejo é uma montagem estruturada a partir de ideias pensadas cuidadosamente que evidenciam a existência de um projeto cênico bem definido. Com isto não vemos no palco os desencontros corriqueiros de outras montagens locais. O seu burilamento visual composto por harmonioso ajuste entre os elementos de cena e iluminação e a sua organicidade como drama, chegam ao espectador não como obra do acaso, mas transparecendo que Em Nome do Desejo é um espetáculo onde forma e conteúdo correspondem à proposição do encenador, o que pode incluir desde suas preferências estéticas como, até mesmo, sua visão pessoal de mundo.

Nesse ponto percebe-se a estreita afinidade do encenador com o texto de João Silvério Trevisan. Ele chega ao palco carregando a mesma aura romântica do livro e a música – em geral trechos de obras clássicas inspiradas em temas religiosos – tem um papel predominante na obtenção desse resultado. Ela é colocada em sintonia com a movimentação dos atores de modo a provocar uma forte impressão como acompanhamento da ação dramática, o que reforça a impressão de que a história se derrama em tiradas de apelo melodramático. O tom de melodrama e sentimentalismo profundo, todavia, reverte-se uma fina ironia ao discurso autoritário e austero do seminário, lugar que cresce aos olhos do espectador como um edifício sólido e sombrio sem que se precise colocar em cena um único móvel.

A direção captou também quanto o romance, em alguns momentos, aproxima-se do barroco na conjugação das palavras e na arquitetura cênica sugerida. Os poemas de Santa Teresa D’Ávila e São João da Cruz, na forma em que são expostos, assim como as imagens compostas a partir do ritual litúrgico, são a prova de tal percepção.

*Crítica publicada originalmente em 30/04/1992 no Caderno C, do Jornal do Commercio