Um papo com Júlia Katharine, primeira trans a dirigir um filme em circuito comercial no Brasil: “Não gosto desse lugar de atriz trans”

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Com circulação em vários festivais do mundo, entre eles Cinéma du Reel, Festival de Tiradentes, Indie Lisboa e Festival de Brasília, Lembro Mais dos Corvos é o primeiro longa-metragem documental do diretor Gustavo Vinagre. Produzido pela Carneiro Verde Filmes, o filme, que estreia marcada para esta quinta-feira (21) em todo Brasil, através do projeto Sessão Vitrine Petrobras é um monólogo da atriz e cineasta Júlia Katharine Okada, uma personagem em uma noite de insônia. O diretor e a atriz se conhecem há dez anos e já fizeram três curtas-metragens juntos. Júlia é coroterista do filme, junto com Gustavo.

Depois a exibição do longa, em todas as sessões, será mostrado o curta-metragem Tea For Two, dirigido por Júlia e, e estrelado por Gilda Nomacce, o que faz dele o primeiro filme dirigido por uma mulher trans com estreia em circuito comercial no Brasil. Em entrevista à Revista Grito!, Júlia fala sobre sua atuação e a recepção dos dois filmes.

Você é a primeira mulher trans com um filme estreando em circuito comercial no Brasil. Qual o peso dessa representatividade? Qual a importância do Tea For Two estar sendo exibido na atual conjuntura política do país?
Quando eu soube que a Vitrine Filmes ia exibir Tea For Two com o longa do Gustavo Vinagre, Lembro Mais dos Corvos, eu fiquei extremamente feliz, não pensei na hora nessa questão de ser a primeira pessoa trans no Brasil a ter um filme em circuito comercial, eu só pensava no quanto essa dobradinha é bacana e que deveria ocorrer com mais curtas metragens, abrindo ou fechando uma sessão de um longa. Temos muitos curtas metragens maravilhosos que dificilmente chegam ao grande público, e isso tem que mudar. Não sei se vou alcançar um grande público, mas seria lindo.

Ver os dois filmes em cartaz pra mim é uma declaração de que a população transexual e travesti está ai, sobrevivendo a toda essa violência que o ódio e a desinformação geram e que nos manteremos atentas e fortes, buscando nosso espaço que nos é negado desde sempre apenas por ser quem somos. Isso tem que mudar. Somos todos seres humanos, nascemos de um casal heteronormativo comum, não caímos do céu ou brotamos do chão, saca?
Minha militância é existir fazendo cinema e comigo tem muitas outras mulheres e homens trans e travestis, não queremos nenhum privilégio, só viver e viver com dignidade.

A equipe do Tea For Two é composta, majoritariamente, por mulheres. Como foi a escolha de colocá-las em todo o modo de produção do filme?
Logo que me inscrevi no edital da SP Cine, eu já sabia que seria um filme feito por mulheres, já tinha a Beatriz Pomar na mente para ser minha assistente de direção e montadora do filme, a Cris Lyra na foto, e todas as outras mulheres foram chegando através da Lara Lima e da Cris Lyra, e foi maravilhoso.

Qual a recepção do curta até agora? Por onde ele já circulou?
A recepção tem sido muito boa, felizmente. Fico muito comovida sempre que alguém se aproxima e elogia o filme, as atrizes Gilda Nomacce e Amanda Lyra, o Carlos Eduardo Valente, que interpreta o zelador escroto, e também ouço com atenção as críticas negativas, sei que ainda tenho muito a aprender.

Pode nos contar mais um pouco sobre a sua experiência como atriz no filme Lembro Mais dos Corvos do Gustavo Vinagre?
Gustavo e eu somos amigos, e foi um set repleto de amigos, Cris Lyra na fotografia, o Sérgio Silva na assistência de direção, o Rodrigo Carneiro produzindo…fizemos o filme em uma noite, uma loucura. Fiquei um pouco tímida no começo, mas logo eu relaxei e procurei contar todas aquelas histórias de maneira que o público não se entediasse, essa era a minha maior preocupação.

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Cena de Tea For Two, dirigido por Julia Katherine. (Divulgação).

Você atuou também como roteirista do longa. Como foi o processo de construção do roteiro junto com o diretor? Como vocês escolheram os temas tratados no filme?
Gustavo fez uma escaleta com os temas que ele gostaria que eu desenvolvesse diante da câmera, sem segundo take, eram temas e passagens da minha vida que ele conhecia bem. Pensamos em fazer um filme híbrido, um documentário com algumas pinceladas de ficção, misturamos tudo de modo que o espectador não saiba o que é verdade e o que não é.

Como tem sido o debate atualmente sobre essas questões? A pauta está girando em torno de trazer as pessoas trans para dentro do debate, ao invés e enxergá-las à margem, como ocorria durante muito tempo?
Ainda temos muito o que conversar e debater sobre representatividade trans no cinema. É preciso entender o seguinte: não queremos privilégios, queremos trabalhar, exercer nossos ofícios, contar nossas histórias…temos muitas mulheres e homens transexuais, binários ou não, que são ótimos profissionais, atores, cineastas, roteiristas… quando se pensa em fazer um filme com personagens transexuais, é preciso dar prioridade para esses profissionais, conhecê-los.

Comenta-se muito de filmes com gays, transexuais ou travestis com papéis desempenhados por homens heterossexuais. Qual sua opinião a respeito?
Atores e atrizes cis podem interpretar o que quiserem, mas estamos em um momento em que é necessário dar visibilidade e priorizar as pessoas transexuais nesses papéis. Penso que é o momento de deixarmos de ser objetificadas, exotificadas, vitimizadas e principalmente assassinadas e silenciadas.

É importante você se pensar como atriz independente da sua sexualidade?
Minha sexualidade e identidade de gênero são questões da Julia mulher, não tem nada a ver com a Julia atriz. O que eu quero dizer é que sou uma mulher transexual que é atriz, roteirista e cineasta, não gosto desse lugar de atriz trans, roteirista trans, cineasta trans. Isso é feio, segregador, não gosto.

Você relata em Lembro Mais dos Corvos que é uma cinéfila voraz. O Tea For Two é uma ficção e mostra um cartaz de um filme fictício (tudo isso dentro do próprio filme!). Como você insere o cinema na sua vida?
Amo cinema como parte de mim, não sei pensar em cinema de outra forma. É meio cafona dizer isso, clichê, mas é isso, sem cinema eu não vejo graça na vida. Tea For Two é um longa metragem que eu tinha na minha cabeça e que escrevi quando estava no Japão. Eu sonhava, vibrava, mesmo achando impossível ou muito distante da minha realidade, que um dia eu faria esse filme, então surgiu o edital da SP Cine para curtas, o Gustavo Vinagre me incentivou a me inscrever, transformei o longa em curta aproveitando a primeira parte do longa. Cinema me salva todos os dias de morrer, de desistir, ainda mais agora nessa época triste de retrocesso e estupidez.

Renata Carvalho, atriz trans que protagoniza a peça “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, por exemplo, já foi censurada. Na sua opinião, a que se deve tanta polêmica em torno dos corpos das pessoas trans, principalmente nas artes?
Vivemos em uma sociedade heteronormativa cisgênera que até pouco tempo tempo, entendia a transexualidade, como uma doença mental. Os corpos trans nunca foram naturalizados na sociedade, sempre nos foi negado o espaço de convivência e ainda é assim, no mundo todo. Existimos desde sempre, e sempre lutando para que possamos viver a vida plenamente, e não apenas sobrevivendo e existindo a margem de tudo.

Você acompanha a produção cinematográfica brasileira e também realiza consultorias de roteiros. Qual o nível de conhecimento dos realizadores ao construir personagens trans?
O mesmo que o da maior parte da sociedade, confuso e equívocado, alguns muito bem intencionados, a maioria eu diria, mas ainda falta diálogo e a presença de pessoas trans dando consultoria ou mesmo escrevendo nossas próprias histórias.

E o que podemos esperar mais do seu trabalho? O que vem por aí?
Estou desenvolvendo o roteiro de um longa que vou dirigir e espero filmar ainda esse ano, A Família Valente. A Gilda Nomacce é a atriz protagonista e também produtora do filme. Adoraria atuar mais, mas não me convidam para atuar rsrs