Um papo com Marco Polo, do Ave Sangria: “a história se repete como farsa, os reacionários perderam a vergonha”

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“Foi como se esse hiato de 45 anos não existisse. Também queríamos mostrar que nossa música continua necessária e pertinente, principalmente no momento em que estamos vivendo”, explica, em entrevista à Revista O Grito!, Marco Polo, vocalista e letrista da lendária banda pernambucana Ave Sangria, sobre o segundo álbum Vendavais, de 2019.

O artista foi um dos protagonistas do Udigrudi – movimento de rock psicodélico pernambucano surgido na primeira metade dos anos 1970. Em 2019, a banda voltou a gravar um disco. O álbum, lançado em abril, conta com 11 músicas inéditas compostas entre 1972 e 1974. O trio Paulo Rafael (guitarra solo e viola), Marco Polo (voz, composições) e Almir Oliveira (voz, guitarra base, composições) é remanescente da formação original.

O primeiro e cultuado álbum homônimo foi lançado em 1974. Por ser considerado de contracultura, o trabalho teve faixas censuradas pela Ditadura Militar. Na época, Ivson Wanderley (guitarra), Israel Semente (bateria) e Agrício Noya (percussão) também faziam parte do grupo.

O músico falou também sobre o encontro com as novas gerações e sobre o atual momento político do país. A banda se prepara para se apresentar no 29º Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), no Agreste, no Palco Pop, no próximo dia 27.

Como foi voltar a gravar um álbum após 45 anos, num hiato tão grande? Antes tarde do que nunca?
Queríamos dar continuidade a nosso trabalho. Queríamos mostrar que a ditadura nos proibiu e nos prejudicou mas não nos destruiu. Foi como se esse hiato de 45 anos não existisse. Também queríamos mostrar que nossa música continua necessária e pertinente, principalmente no momento em que estamos vivendo. E foi uma grande satisfação. Pela primeira vez tivemos um produtor que entendia ao nosso trabalho (Juliano Holanda, com participação de Paulo Rafael); tempo de estúdio sem limite (o primeiro disco foi gravado em cinco dias); nenhuma limitação de tempo na duração das músicas (no primeiro as músicas deveriam ter no máximo dois minutos e meio); tecnologia de ponta; e maior experiência.

Como foi pensada a sonoridade do LP “Vendavais”?
Quanto à sonoridade escolhemos manter a que caracterizava a banda: rocão pesado com incursões ao lirismo quase acústico. Valorização dos vocais, das guitarras e da bateria/percussão.

A década de 70 ficou marcada por canções escritas com diferentes tendências estético-políticas, mas tendo em comum os anseios de liberdade e democracia e oposição à ditadura militar. Isso inspirava também a banda de vocês. Como se deu essa influência do contexto histórico daquela época para a Ave Sangria? E como enxergam a atual conjuntura político-social do Brasil? De que forma isso permeia o trabalho da banda?
Antes dos anos 1960 os jovens não tinham voz nem vez. Toda vez que um abria a boca pra dar uma opinião, ouvia: escute os mais velhos, eles sabem o que é melhor para vocês. A partir dos anos 1950 começaram a surgir reações, como os personagens revoltados de atores emblemáticos como James Dean e Marlon Brando. Eram os “rebeldes sem causa”. Quando os jovens dos EUA começaram a protestar contra a guerra do Vietnã, as coisas começaram a ficar mais claras: os mais velhos decidiam entrar na guerra mas quem ia pra lá morrer eram os jovens. Com o Maio de 68, quando os estudantes franceses se rebelaram contra tudo, a coisa se espalhou pelo mundo. Ainda não existia internet mas os jovens do planeta estavam conectados numa única postura. Poderiam não saber direito o que queriam, mas com certeza sabiam o que não queriam: a velhacaria da política tradicional; a hipocrisia da moral conservadora; os preconceitos contra as mulheres e os negros.

Com a eclosão dos Beatles surgiu o rock como a trilha sonora perfeita para tudo isso. No Brasil havia os jovens conformados (normalmente filhos de famílias muito ricas ou de militares) e os inconformados. Entre estes havia a turma de esquerda que lutava contra a ditadura e havia os que escolhiam lutar pela mudança dos costumes. Nós optamos por este lado. Então a banda Ave Sangria desde o começo queria fazer não apenas entretenimento mas também provocação. Por uma ironia do destino a gente, que surgiu numa ditadura, volta numa hora em que o Brasil está mergulhado numa onda de conservadorismo que quer levar o país para um passado há muito ultrapassado. Tudo bem. Mais uma vez a Ave Sangria está fazendo uma música necessária num momento desnecessário.

Desde sua formação, a banda assumiu postura questionadora do moralismo e do conservadorismo, coisas que a juventude compartilha (ou compartilhava!). O país e o mundo parecem ver o avanço novamente de uma onda conservadora. Vocês concordam? O brasileiro encaretou?
O Brasil não encaretou. Reacionários sempre existiram por aqui. Só que antes eles, com algumas exceções, se escondiam. Agora não. Eles vão às ruas. Batem no peito. Se exibem. Se orgulham de ser de direita. Perderam a vergonha. Acham que estão certos. Foi assim na Espanha fascista. Foi assim na Itália fascista.

Mais uma vez a Ave Sangria está fazendo uma música necessária num momento desnecessário.

A formação tem novos integrantes: Gilu Amaral, Júnior do Jarro e Juliano Hollanda. Como eles se encaixam na banda, já que eles têm sua própria sonoridade?
Os três jovens que integram a banda hoje têm seus trabalhos autorais. Mas todos eles dizem que quando estão no palco com gente eles são Ave Sangria. E eu atesto isso.

O público da Ave Sangria é, majoritariamente, da década de 90. A que atribui essa admiração pela banda?
Noventa por cento de nosso público é de jovens. Eles cantam em coro com a gente todas as músicas. Acho que isso acontece porque nossa mensagem é Rebeldia e Liberdade. E todo jovem são se identifica com isso.

As músicas do disco “Vendavais’ foram compostas nos anos 70, mas seguem atemporais. Como você avalia isso?
Pois é, a história se repete como farsa. E o que estamos vivendo senão uma interminável ópera-bufa? Nossas músicas são atemporais porque falam de questões eternas na humanidade.

A faixa-título é uma das letras mais pesadas do álbum. Como foi pensada essa canção?
Essa canção é quase um manifesto. Queria resumir duas coisas: não se deixe iludir, não deixe que alguém influencie sua opinião e sua ação; seja você mesmo custe o que custar; nunca perca o senso crítico.. E, por outro lado, meta o pé no pau do barraco, quebre o que você acha que deve ser combatido; seja sempre um indignado diante das mentiras, e das injustiças. Houve algumas alterações pontuais para atualizar a letra. Por exemplo: quando eu falo de um muro no início era o muro que dividia um povo e uma cidade, o muro de Berlim. Não teria mais sentido agora. Então mudei a letra para me referir aos muros materiais e ideológicos que barram os imigrantes e os miseráveis.

O show da Ave Sangria no Festival de Inverno de Garanhuns promete com clássicos e também as nova do disco “Vendavais”. Vocês estão preparando algo especial?
Vamos apresentar o mesmo show que fizemos no Sesc Pompéia em São Paulo, mesclando músicas do novo e do primeiro álbum. Tem dado certo. A meninada já canta conosco as letras de “Vendavais”.